Guerra ortográfico-ideológica
Hoje deparei com uma coluna no jornal diário que habitualmente leio, patrocinada não sei por quem, em que um dos meus colaboradores favoritos do dito matutino, Eduardo Prado Coelho, teorizava sobre comparações políticas e fanatismos. Entre os seus argumentos para discordar do cartaz empunhado pelo simpático, velhinho e possivelmente militante do Partido Comunista Português, no qual de um modo simplificado e simplista se comparava Bush a Hitler, não vi contemplada a política de guerra preventiva, nem tão pouco a de invasão, de desrespeito limite pelos direitos humanos, de atropelo voluntário de qualquer regra internacional, de promoção e apoio de ditaduras sanguinárias. Numa coisa estaremos de acordo, no entanto: o que Hitler tinha a mais de loucura e psicopatia, Bush compensa com estupidez. Só o tempo dirá se uma é realmente mais perigosa do que a outra. Posso ainda dar uma achega ao faccioso e falacioso aproveitamento ideológico feito por E.P.C: estive presente em quase todas as manifestações anti-guerra (com hífen, será fanatismo?) realizadas em Lisboa e nelas vi cartazes semelhantes empunhados por simpáticos jovens comunistas, bloquistas, socialistas, independentes, enfim, um autêntico arco-íris. E por menos jovens. E por simpáticos velhinhos, decerto inconscientes. Eu, confesso, nunca transportei um, nem faço questão.
Nunca vi, numa coluna sua, E.P.C. insurgir-se contra comparações semelhantes em que a primeira variável não é Bush, mas Estaline - e desde já me penitencio se estiver errada ou se tenho andado distraído. As semelhanças serão imensas, mas também as diferenças. E penso que a diferença mais significativa é ideológica, filosófica e intelectual - a diferença entre um ditador que ascende nas contingências de uma revolução longa, lenta e difícil e o ideólogo de uma supremacia racial, de uma política de desigualdade, extermínio e imperialismo que com base nessas premissas e com o único objectivo de as cumprir ascendeu ao poder - com terríficas consequências dificilmente equiparáveis por qualquer outro tirano. Ou é essa a nossa esperança. Será só filosofia, será uma diferença abstracta, mas não é E.P.C. um intelectual, na melhor acepção da palavra?
Isto significa que o combate ao reflexo condicionado que a sineta do anticomunismo (o corrector ortográfico do meu computador sugere-me que não utilize o hífen - acedo, embora relutante), tão profundamente enraizou no salivante pensamento ocidental do pós-guerra, é ainda uma longa aventura. Na Festa do "Avante!" multiplicaram-se os debates, as discussões políticas, sociais, ambientais, económicas, culturais, confrontaram-se posições e argumentos, pensou-se. Presentes estiveram pensadores de vários quadrantes, naturalmente também muitos militantes, muitos simpatizantes do PCP, um partido que se assume como marxista-leninista - assim mesmo, com hífen e tudo, não obstante a sabotagem do corrector ortográfico. Que dizer dos pensadores que com ele se identificam, que nem são assim tão poucos nem tão insignificantes? Mas a Festa do "Avante!" tem destas coisas maravilhosas: existe neste tempo e com gente real, viva e acordada. E quem a conhece por dentro não pode deixar de sorrir com algumas condescendentes apreciações de quem de fora julga e opina. Ora a partir daqui dificilmente se entende que um dos nossos mais interessantes intelectuais, no mesmo espaço em que já nos ofereceu tantos e tão generosos testemunhos do seu humanismo, da sua inteligência, do seu sentido de justiça, da sua visão aberta do mundo e, não menos importante, da qualidade da sua prosa, consiga demonstrar um simplismo e uma estreiteza de horizontes dignos de alguns dos seus antípodas filosóficos, caçando uma espécie de gambozinos do pensamento neo-liberal. Deve ser a isto que chamam "independência intelectual".
Manel da Truta, 9/9/2003