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sexta-feira, dezembro 19, 2003

O cão de Álvaro de Campos

O Ví­tor, discreto como sempre, fazendo o seu belo belogue e oferecendo-nos o que o preenche. E é tão bonito, este poema. Tão português e simultaneamente tão lúcido... Às vezes esqueço-me de que tal coisa é possí­vel.

...sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

...é assim que me sinto quando passo frente às casas onde cresci, às minhas antigas escolas - uma das quais morreu para dar passagem ao viaduto da CRIL - até dentro da própria casa dos meus pais, que sendo minha já não o é.

Faz-me pensar neste outro, por sua vez quase uma conclusão, quase uma estupefacção.

Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulho de chinelas no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.


E eu, que tanto gosto de viajar, que tanto queria - e quero - correr o mundo...

Nunca, por mais que viaje, por mais que conheça
O sair de um lugar, o chegar a um lugar, conhecido ou desconhecido,
Perco, ao partir, ao chegar, e na linha móbil que os une,
A sensação de arrepio, o medo do novo, a náusea -
Aquela náusea que é o sentimento que sabe que o corpo tem a alma,
Trinta dias de viagem, três dias de viagem, três horas de viagem -
Sempre a opressão se infiltra no meu coração.


... e conhecer cada canto, cada pedaço de gente, cada bicho, cada pétala e cada folha, cada curva e cada nuvem, dou por mim chorando os vários pequeninos mundos que foram ficando para trás.

- ou antes, que se foram acumulando cá dentro, misturando, transformando, descodificando, fantasiando...

Bicho estranho, o homem.