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quinta-feira, dezembro 25, 2003

Olhos de criança

A estética é depuradíssima. As marcações de cena vão crescendo do geométrico rigoroso à rigorosa construção do acaso. Tudo é muito francês, até os turistas americanos são muito franceses, e tudo é de lado nenhum. Mais precisamente, deambulamos por uma Paris que não é nenhum lugar e portanto é qualquer um – o cinza do arranha-céus é o mesmo ali ou em Roma ou no México, que importa se a porta envidraçada do edifício reflecte a Torre Eiffel ou a Fonte de Trevi? – mas isso não é impedimento para nada. A alegria de se ser conduzido em fila indiana e contado à cabeça, a diversão nocturna e social, as fotografias típicas – mesmo que o típico se reduza a um quiosque e respectiva florista – resistem a tudo, mesmo à evidência de que Paris é igual a Amesterdão, que foi igual a Londres. Nós somos modernos. E a modernidade é mesmo assim, igual, normalizada, tirana.


... roubei esta ao Crítico...

Playtime, de Jacques Tati, tem cópia restaurada em exibição no Nimas. É um crime deixar passar. O cinema de Tati é delicioso, cheio de inteligência e espirituosa ingenuidade e este filme parece – é? – a vida moderna vista pelos olhos de uma criança lúcida. O resultado é bastante real e absurdo. Como é habitual, temos dos diálogos apenas retalhos razoavelmente compreensíveis, até porque todo o resto de cada conversa de certeza que não interessa para nada. Tal qual me pareciam os diálogos dos adultos quando era criança e as palavras passavam a correr pelos meus ouvidos, cobertas por outras que ficavam a ressoar e pelos pensamentos e sensações que cada som provocava. Para compreender o mais possível utilizei a mesma técnica de então: parar, observar e deduzir. E quase inevitavelmente, rir.

Neste filme, cada cena é um presente requintado, que se saboreia devagar e com os olhos muito abertos para não escapar nada. Descobrir os gags que se sucedem e que se escondem uns por detrás dos outros não é tarefa fácil. Mas asseguro-vos, é uma verdadeira trip. Cada pormenor pode ser uma saborosa gargalhada à espera de ser descoberta, cada sentido tem outro sentido a servir-nos como digestivo. Da complexidade nasce o banal e com o banal se reconstrói o complexo. O dedicado guia intermitente não poderia ser outro senão o nosso clown Hulot, velho camarada de tropa de aparentemente toda a gente, único dos veteranos, aliás, absolutamente desadaptado das maravilhas da tecnologia. Os carros topo-de-gama – ... até tenho parquímetro!, congratula-se uma das personagens -, os prédios supermodernos dentro dos quais todos os inquilinos se reúnem ao serão, frente a frente, separados apenas por paredes e televisores, os edifícios frios, labirínticos e electrónicos, as cadeiras que fazem Sssccchhhh. E novamente os gags que enchem tudo isto, meus amigos, os gags!...


... e esta também.

Arte da melhor para terminar o dia em beleza. Feliz Natal, Sr.Hulot!