Ser corajoso
Eu já nem consigo dizer que é preocupante a incapacidade que o ser humano tem de aprender com a história, que é desesperante a incapacidade que cada um de nós tem de olhar para dentro para daí poder olhar para fora com menos preconceito, começo a sentir-me a Dori, do Finding Nemo: se não tivesse memória do que tenho visto neste mundo talvez houvesse desculpa para continuar a repetir ad infinitum algo que ao longo dos séculos tem sido pregado por mentes bem mais clarividentes que a minha. Mas é também a memória do que tenho visto neste mundo que me devolve esperança de que, por um estranho capricho da natureza, ao comer o peixe haja quem incorpore o sermão. E com a esperança regressa a preocupação. E fecha-se o círculo. Por isso acabo por regressar sempre a estes temas, por isso continuo convicto de que a política - o serviço à "polis", à "cidade", e a cidade é feita de gente - ainda faz sentido. Que a democracia e a liberdade terão sempre neste campo a batalha final, embora apenas algumas das que a precedem.
E uma deprimente ofensiva-defensiva está em acção. Como bem aponta Eduardo Prado Coelho no Público de hoje,
existe uma moralização do debate que parece querer impor uma só posição possível: quem não esteja hoje com Bush só pode ser um cobarde, um pusilânime, um membro de uma sociedade corrompida, um indivíduo falho de carácter, um representante de uma esquerda "oportunista e amolecida". Donde, ou se é pró-Bush, ou nem sequer se merece existir, acrescido de uma despolitização do debate em nome da guerra: partindo daquele princípio de que "em tempo de guerra não se limpam armas", alguns pretendem defender que "em tempo de guerra não se faz política".
Eu continuarei a debater com quem estiver interessado em conversar e não em bombardear o inimigo. Continuarei a manifestar-me enquanto for necessário. Continuarei a repetir, para quem me quiser ouvir, que olho por olho e o mundo acabará cego.
E a subrescrever por inteiro o certeiro final da coluna de EPC: Mas se, para combatermos o inimigo, eliminamos o que o inimigo quer combater em nós, não estaremos a dar-lhe a vitória pelo mais perverso dos caminhos?
Até lá chegarmos, continuaremos a ver Pacheco Pereira no seu escritório, José António Lima na redacção do seu jornal, Maria João Avillez nos estúdios da SIC ou Helena Matos enquanto vai buscar as crianças à escola a proclamarem: "É a guerra! É a guerra!" E acharem que isto é que é ser corajoso.