Intervenção - 25 de Abril 2003
Abril fez das gerações nascidas depois de 1974 jovens portadores de uma herança de luta e de liberdade, legada pelos milhares de homens e mulheres que durante os terríveis 48 anos de fascismo resistiram à opressão e à perseguição, quantas vezes dando a sua própria vida em nome do sonho da construção de uma sociedade de liberdade e solidariedade, de democracia e igualdade.
É verdade que se costuma afirmar – como se de um defeito se tratasse – que os jovens nascidos depois do 25 de Abril encaram a liberdade como algo tão natural como respirar. Claro que para a liberdade plena e absoluta ainda nos faltam muitos passos a dar, de todos e de cada um. Mas é um valor positivo, de que todos nós, e especialmente todos aqueles que das mais diversas formas fizeram com que as portas de Abril se abrissem, nos devemos orgulhar. É um valor positivo que os jovens reajam quase instantaneamente contra quem lhes queira cercear a liberdade, impor decisões sem os ouvir, censurá-los. É boa esta certeza da liberdade conquistada, é bom que entendamos todos que a melhor forma de a defender é exercê-la. E quando pensamos nas lutas dos estudantes, do básico ao superior, quando pensamos na participação dos jovens nas lutas dos trabalhadores, quando pensamos nos milhares de jovens presentes nas lutas pela paz, vemos que é possível encarar com confiança o futuro do nosso povo.
E no entanto...
No entanto há muitas promessas de Abril que não se cumpriram. Há muitos recuos nos direitos que Abril nos trouxe. Demasiados. Há muito quem diga que a democracia começou noutro 25, em Novembro. Há quem queira ajustar contas com o 25 de Abril e fazer da nossa geração uma geração sem direitos.
A começar no direito à educação: foi com o 25 de Abril que conseguimos a massificação do ensino, que levámos os filhos das classes trabalhadoras a todos os níveis da escola. Mas hoje, 29 anos depois, será que podemos falar em igualdade? Será que podemos falar em iguais condições de acesso, de frequência e de sucesso de todos os jovens em todos os graus de ensino? Basta olhar para os terríveis dados do abandono e do insucesso escolares ou da iliteracia para perceber que não. E basta olhar para as ofensivas que aí vêm para perceber que o que se recuou ainda não chega. Que quem quer o regresso da escola à moda antiga se prepara para novos ataques à escola pública, gratuita e de qualidade. E basta:
- basta olhar para uma revisão curricular que insiste na divisão entre escolas de primeira, trampolins para o ensino superior, e escolas de segunda, túneis para a mão-de-obra barata, sendo a capacidade financeira de cada família determinante no acesso a umas ou outras;
- basta olhar para a sobranceria com que os vários governos encaram as reivindicações dos estudantes;
- basta olhar para o novo anunciado aumento das propinas, que distancia cada vez mais os jovens do prosseguimento de estudos, o que – é bom recordá-lo hoje novamente – é um direito de todos e uma base indispensável ao desenvolvimento do nosso país;
- basta ver como os currículos das escolas continuam a empurrar o 25 de Abril para o fim do ano lectivo, matéria dada à pressa para cumprir o programa; como se continua a chamar “antigo regime” ao fascismo, mascarando a polícia política, o colonialismo, a censura, a exploração, a submissão aos grandes grupos económicos, a pobreza, a fome, as prisões, a guerra colonial, o atraso. Defender Abril também é exigir que nas escolas se ensine e se aprenda a luta do nosso povo contra o fascismo.
E nesta lógica passamos à Cultura, com sucessivas políticas de incoerência, de desleixo, de desrespeito até. Cortes de subsídios ou subsídios irrisórios, ausência de direitos e desregulamentação no que toca a praticamente todas as áreas e profissionais, artistas sem casa e teatros e auditórios votados ao abandono – e quem arranja soluções alternativas é facilmente, como sabemos, despejado -, enfim, desprezo pelas artes, por quem as ensina, por quem as aprende, por quem as vive e por quem as recebe e faz viver. Desprezo, no fundo, pela identidade de um país e como tal pelo seu povo. Mas o princípio é básico e, mostra-nos a História, nada original. Um povo inculto e sem horizontes nem perspectivas é incomparavelmente mais fácil de controlar, de enganar, de cercear, de asfixiar. É mais fácil de calar.
E podemos continuar a olhar para a nossa realidade, para outros sectores da sociedade, e ver como outro direito, consagrado até pelas nações unidas como direito universal, é todos os dias pisado e ultrapassado: o direito ao trabalho. Este Código Laboral quer aprofundar o caminho da precariedade, que os jovens conhecem tão bem, dos baixos salários, da submissão ao patrão, do desemprego. Quer também, e sobretudo, criar uma geração sem direitos e impedir a organização dos trabalhadores nas empresas, tudo em nome de uma paz podre, de um fosso cada vez maior entre ricos e pobres, em nome de um desenvolvimento de números e percentagens que impede os sonhos e as realizações de milhares de jovens do nosso país.
Um povo inculto é mais fácil de calar, sabêmo-lo. Mas no que temos de pensar é no porquê de NÓS deixarmos que nos calem. Porque a responsabilidade é de todos e de cada um de nós. Devemos aos que deram a vida pela liberdade e aos que ainda estão connosco provar que a sua luta não foi em vão. Já dissemos também que a melhor forma de defender a liberdade, hoje que a sabemos nossa e vital, é exercê-la. Hoje, Dia da Liberdade, dia de esperança e de luta, nós, jovens, dizemos que a luta continua!