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segunda-feira, maio 03, 2004

Gabriel II

Intenções de contar uma história? Sim, talvez. Mas se as almas se confundem tanto, como defini-las e nomeá-las, como honrar a existência real que definitivamente têm e que definitivamente as enclausura, as enquadra? Tirar-lhes a realidade dando-lhes um nome. Não é disso que se trata? Quando baptizo um filho faço-o para lhe dar realidade, existência jurídica, social, o que for, para além daquela que tem na minha alma, no meu coração, no meu corpo ainda e sempre. Quando baptizo uma personagem... Bem, uma personagem baptiza-se para matar, para expulsar das entranhas, para irrealizar na prática o que se realiza todos os dias. Falar de mim sem falar de mim, ser pessoal e ser universal, só megalomanias, caramba, porque não nos contentamos em ser o que somos, ainda que isso seja apenas o bobo eterno que acompanha, e por vezes diverte, a nossa íntima e divina realeza?

Chamo-lhe Gabriel. E pronto. Cai-me aos pés, fulminado pela sua nova identidade, morto, definitivamente morto, porque a partir de agora com vida própria, renascendo nos dedos de alguém que não conhece, que apenas pressente. Pressentirá?

Não é um anjo, Gabriel, nunca tentou sê-lo, mas os destinos de cada um são os destinos de cada um e pouco se pode fazer para contrariá-los quando estão absolutamente de acordo com a própria natureza. Será que acredito nisto? Não. Por vezes sim. O mais do tempo não sei... Não sei. Como qualquer anjo, Gabriel sofre. Não pelos outros, que são muitos e incontroláveis, mas por si próprio. Os outros são imperfeitos, toda a gente sabe. Há que compreender. Há que ajudar a que se guiem a si mesmos. A Gabriel ninguém guia. Ele não deixa. Não é por mal, não se julga superior, é apenas superiormente incapaz de lidar com as próprias imperfeições. E continua rodando na arena até ficar tonto, pára uns momentos, acende um cigarro, bebe um copo e fala de amor, beija alguém, se puder, e volta a rodar, procurando a saída que rejeita quando finalmente surge por parecer demasiado fácil, tão fácil que não pode ser real. Jamais lhe passou pela cabeça utilizar as asas para escapar, já o disse, Gabriel nunca quis ser um anjo e para mais os gatos não têm asas, muito menos os gatos vadios, que têm de ter os pés bem assentes no chão, mesmo quando caem, e não se podem dar a esses luxos.

Gabriel é bonito. Tem as belezas de muitos anos, muitas décadas, confusamente instaladas como numa rocha, as feições duras e marcadas com as marcas das vidas que viveu e das vidas que não viveu, feições sóbrias, de uma sobriedade que Gabriel não tem. Falo dele? Sim. E de mim, que nele me reconheço, reconhecendo-o em mim. Espelhos por detrás de garrafas. Tanto dizem os bares da natureza humana. Gabriel ama-me. E eu amo Gabriel. E quando olho as suas vidas as minhas vejo, não como as desejo, mas como são. E isso agrada-me. Gabriel é tudo o que de mais exterior e visceral existe em mim, exterior como um espelho, interior como o próprio sangue.