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quarta-feira, maio 05, 2004

Gabriel IV

E sucedem-se os dias, uns completos, outros por acabar, alguns dias de nadas e de neuras, de sóis e nuvens deslocados, de astros fora do lugar, dias em que caos e desordem nada criam, nada alimentam, para nada servem, dias que demoram a passar, que se arrastam lânguidos, troçando-nos na nossa impotência. Sucedem-se os lugares que me falam de Gabriel e que se transfiguram quando pareciam já tão familiares.

Regresso ao jardim onde Gabriel me olhou, ainda olha, encostado a uma grade. Quando ali estivemos pareceu-me a grade mais alta, talvez por Gabriel não ser alto, que os anjos precisam de leveza, mesmo que nunca cheguem a aperceber-se das asas que carregam. Ou serão as dimensões das coisas que mudam de um dia para o outro e não deixa de ser irónico que a grade me pareça mais baixa, menos intransponível, na ausência de Gabriel. É, por certo, ilusão, assim como a sua imagem, estática, por detrás da estátua, mais uma daquelas eternidades em que nos olhamos sem tempo, quando a distância nos une, parecendo longa apesar de curta. Sei-o longe, é um daqueles dias em que Gabriel não me esqueceu, mas gostaria que eu o tivesse esquecido, sei que o seu peso não é menor do que o meu e a prova é que Gabriel cai de cada vez que me encontra, seja o encontro imprevisto ou não. E se Gabriel é assim e eu sou como Gabriel isso significa que eu também caio, mas perco os sentidos durante as quedas e não sinto as aterragens, embora lhes sinta longamente os efeitos.

Por que não nos amparamos mutuamente, bem, não posso explicá-lo, não o compreendo, Gabriel também não, talvez nenhum dos dois se aperceba da amplitude da queda do outro, ou mesmo da sua própria, insistindo por isso em cair sozinho. Ele ou eu ou ambos? Existem também as regras que Gabriel adopta como suas, embora, como já disse, elas sejam menos suas do que as concebe, cheiram a verdade e a mentira, a princípio e a fim, a coragem e a cobardia, a caruncho de confessionário católico, escuro, frio, intimidatório até ao que de mais interior Gabriel tem, desapercebido de tão interior. Eu não me dou bem com madeiras podres, não servem nem para bater em esconjuro, apenas para portas de subterrâneos de musgos e líquenes da idade do mundo e das suas esquizofrenias. Prefiro duendes, como este que hoje vi murmurando baixinho à janela, falando para si e para mim através dos vidros, as orelhas e o queixo pontiagudos desafiando o trânsito que o oprimia, as rugas de séculos de mundos de sobrenatural. Para mim Jesus Cristo, a ter existido, foi um duende, assim como o Buda, Maomé, Confúcio, todos duendes, mas duendes como os dos livros, verdes, todos verdes, e a leveza, o riso, e surge novamente Gabriel e caio, Gabriel que não é verde nem duende, Gabriel homem, anjo, gato.

Doces, no entanto. As quedas. E narcóticas. Fazem-me querer repeti-las eternamente, num ciclo sem fim, nesse eterno retorno que não existe e que me torna tão leve, tão leve...