Gabriel VI
E quem são as nossas testemunhas, quem nos observa e valida os nossos passos em face do mundo, nas ruas e nos cafés, nos bancos de jardim e no nada em que nos ligamos e nos tornamos unos e sós? Quem vê as carícias que são públicas embora não sejam sentidas como tal se todo o mundo se transfigura numa só névoa circundante e aconchegante? Ninguém. Ou nós mesmos, que nos vemos de dentro e de fora ou assim pensamos e construímos as nossas próprias histórias e as contamos e recontamos, tentando lê-las sem nunca as entender. Suportamo-nos uns aos outros e a nós mesmos, choramo-nos e lamentamo-nos, nem a vontade mais forte e determinada consegue manter-se sempre forte e determinada, e então dirigimo-nos às linhas de comboio, não às estações com demasiadas testemunhas, às linhas solitárias, e olhamo-las e trememos e refreamos aquela outra vontade tímida e escondida de saltar, de seguir em frente, tantos obstáculos nos surgem sempre, os carris são só mais um, se o comboio passar entretanto comerá tudo e apagará tudo, corpo e memória e o maço de tabaco ainda cheio, só um cigarro fumado.
E paro. E tremo e não consigo, será ou não possível que o nome de Gabriel não aflore nos meus lábios pelo tempo que eu determinar, ou ele, ainda que vagueie e corra e embata contra as paredes da minha cabeça a cada momento? Esforços sobre-humanos que Gabriel me exige, quem sou eu se deixo que Gabriel me comande assim, me mande e desmande, não é sua intenção, mas fá-lo, e novamente me define e me descaracteriza e me dói.
Testemunha sou também de outros dramas e farsas, dos intermináveis outros, quantas vezes nos esquecemos de que os outros somos nós, de que manipulamos e representamos e exigimos as atenções que nos não são devidas, porra, preciso de atenção hoje, não me exijam nada, hoje sou eu a personagem principal, a criança mandona e preguiçosa e irritante e irritável, cheia de luz e sombras e névoas e hoje não quero que as dissipem, deixem-me perder-me nelas e entendê-las e chamar pelo meu pai se necessário for, se o escuro se tornar insuportável, imprescrutável, sem saídas por terra ou por ar, saídas por mar existem sempre. A chuva forte inundando o rosto, o som das ondas a bater no pontão, a água em movimento comendo as pedras, tentando subir por elas e por elas obrigada a recuar, mas nunca a desistir, este som que tantas vezes me embalou em noites de Inverno numa casa que já não existe para mim. Onde estou agora não se ouve o mar, só o comboio, recordo uma personagem do cinema ou da televisão que aproveitava a passagem dos comboios para gritar sem ser ouvida, não me lembro do seu nome, talvez fosse Gabriel, nem da sua história, meios diferentes de sair, de partir, qualquer deles suficientemente eficaz, partir para continuar a amar, a amar sempre, para evitar que nos matemos uns aos outros, pelas próprias mãos ou pelos mais diversos e ínvios caminhos possíveis. O silêncio, forma final das nossas mortes várias, o silêncio contrafeito de Gabriel, o meu silêncio forçado, o silêncio que só os olhos quebram. Mas os meus olhos mantêem-se teimosamente apartados dos olhos de Gabriel, dos olhos que tanto amo e que tanto me queimam. Deve condenar-se os assassinos? As testemunhas clamam que sim.
Mas não há justiça nas paixões, sejam elas amores ou ódios, não há sentido, acusamo-nos de mútuas injustiças e intolerâncias quando na verdade nos acusamos a nós mesmos. Não suportamos conscientemente o facto de sermos imperfeitos, contraditórios, incoerentes, na perfeita coerência dos apaixonados. Gabriel, como anjo, não o suporta, eu também não. Mas se o mundo é redondo qual é o sentido de tornarmos a vida uma linha recta? Procuramos lados certos onde só há paixões, visões em constante devir, dor, mágoa, alegria, momentos felizes, dor e mágoa na alegria dos momentos felizes, e o oposto. Nunca justiça.