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domingo, maio 30, 2004

A tarde do sexo ditoso



Uma mulher de 68 anos grava em cassetes a sua história, porque é impossível escrever sobre sexo, pelo menos em português, sem parecer recém-saído de sinuca no baixo meretrício, e deixa-as com o porteiro do prédio do escritor que ela acha que pode fazer bom uso delas. Ou pelo menos é a história que nos conta João Ubaldo Ribeiro. O escritor escreve. O encenador Domingos Oliveira chama Fernanda Torres. Os dois adaptam os textos e chegam a um monólogo teatral em forma de conferência. Uma secretária, um microfone, um gravador e um copo de uísque.

E o resultado é uma actriz linda e plena que, sem idade, se entrega a nós e à personagem e com um irresistível sotaque bahiano nos transporta aos mundos que percorreu, aos homens e mulheres que comeu, aos rostos que observou, às vidas que viveu e nos provoca e nos despe e nos seduz e nos interroga e nos faz pensar, rir e chorar. Cada descrição que se possa chamar de pornográfica é antes um quadro pintado, descrito e avaliado pela própria. Os substantivos da beleza estão tão presentes como qualquer vocábulo rudemente descritivo. E o melhor de tudo é que é somente natural que o estejam. Como é natural que eu esteja ao computador a escrever isto com um sorriso enorme na cara. Como depois de um belo orgasmo vespertino.

Sob a mesa, as belíssimas pernas de Fernanda agarram-nos os olhares com a languidez ou com o cruzar e descruzar ao ritmo das palavras e das sensações. A crueza da descrição da primeira experiência - e o espanto consigo mesma e com o que soube fazer nessa primeira vez -, a amiga Norma Lúcia - muuuito mais depravada do que eu! -, os namorados bahianos e os marinheiros americanos, a virgindade e a sua perda na realização da fantasia de que nunca abri mão, o tio Afonso e a pós-graduação em Los Angeles, o irmão Rudolfo e o ataque feroz, franco e despido ao tabu do incesto, Fernando, o companheiro de cama(s) e de vida, a cocaína, a hipocrisia dos outros, a tesão dos outros, a sua tesão, a tesão da vida. E tudo isto com envolvimento, com carinho, com alegria e lucidez na nostalgia. É esmagador. E quando nos avisa que chegou a uma redução de qualquer tese possível de extrair do seu caminho sexual e filosófico eu já estou com um nó na garganta e o corpo a borbulhar por dentro. A redução, o axioma, é: Viver é foder. E nesse momento dou por mim a chorar, como choro na mais minimalista (a)moral de Beckett e na mais barroca declaração de amor de Shakespeare. Se ontem me dissessem que isto ia acontecer eu desatava-me a rir...

E no fim de tudo isto, não assistimos a um monólogo sobre sexo. Recebemos antes uma lição de vida - ou várias. Fomos picados. Pensámos. Sentimos. Espantámo-nos. Excitámo-nos. Rendêmo-nos. Na sua despedida de Lisboa, Fernanda Torres, sozinha sobre aquele palco e despida do colosso de força que nos mostrou ao longo de duas horas, tremeu e chorou frente a uma sala sem um único espectador sentado.

Até agora estou arrependida de não ter ido aos bastidores dar-lhe um beijo na boca...