Um quarto de hotel
É igual a todos os outros. Ou melhor, tem uma pequena marca interior - uma bela fotografia do espectáculo A maçã no escuro, sobre texto de Clarisse Lispector. A imagem é bonita e graças ao amplo enquadramento até consigo esquecer-me de que estão ali a Catarina Furtado e o Paulo Pires.
Mas as marcas para mim verdadeiramente distintivas deste quarto são-lhe exteriores. À porta um grande plano de Luís Madureira no belíssimo recital encenado por Giorgio Barberi Corsetti, Chansons de femmes. E para lá da janela, o Porto. São Bento, os Aliados, os Clérigos, a Sé, a Ribeira afundando-se no vale e logo as caves de Gaia. E o sol a descer sobre tudo isto. O unhappy end do emocionante filme do Europeu é pretexto para que os telejornais falem de nada senão de futebol. Eu olho pela janela, deliciada e feliz. Felizmente, para este sol as únicas bolas relevantes são de fogo.
Só dois companheiros avisto na plateia deste espectáculo, se excluir as gaivotas que me sobrevoam na sua estridente inquietude: um jovem gato contemplativo e Vímara Peres. Desgraçadamente, penso eu, o cavaleiro de bronze tem as costas voltadas para o sol. Penso mal. De onde está vê-o nascer todas as madrugadas. Boa escolha, se vais ser de bronze sine die, melhor que o sejas encarando sucessivas auroras que repetidos crespúsculos.
...Mas nunca verás, como eu, os Clérigos afogados neste laranja. Eu sempre posso decidir esperar pelos primeiros passos do dia.
Mercure Batalha, Porto
P.S.I
E agora a noite, a cidade linda cheia de pequenas luzes amarelas. Boa noite.
P.S.II
E agora fogos de artifício por detrás dos Clérigos. Hmmmm, realmente este não é o forte da inbicta, não senhor...