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quinta-feira, agosto 19, 2004

Esopo revisitado

Já há que tempos se tinham desvanecido nos ares frescos da manhã os últimos ecos, quer das rajadas de metralhadora, com todos os efeitos sonoros mencionados nos manuais de instrução militar, quer do estrondeio das latas de cerveja amolgadas por raras balas de 9 mm., quer dos ralhos, muito severos e intimidantes, da coronela Maria das Dores, quando surgiu ao longe um pastor que se veio aproximando com uma rês aos ombros, segura pelas patas. "Gaita!, parece mesmo o Bom Pastor", surpreendeu-se Maria das Dores. O coronel ficou um bocado enfiado. Se fosse o Bom Pastor o que é que ele ia dizer? É um bocado ridículo receber uma teofania com uma metralhadora, ainda por cima israelita, na mão. O coronel Bernardes escondeu a arma atrás das costas e disfarçou. A figura foi-se chegando. Tinha sangue no pelico. Não era o Bom Pastor.
Na vinda, o vulgar pastor que levava uma ovelha sanguinolenta atravessada ao ombro passou rés a uma oliveira velha que já havia assistido, ainda juvenil e débil, à passagem de uma coorte de Décimo Júnio Bruto por ali perdida e sofrera na sua dilatada existência muitas contingências. A que mais a chocou foi o aproveitamento dos possantes ramos para forca de doze liberais capturados por um bando de frades assassinos a mando do Senhor Rei D.Miguel.
Pois nesta vasta e acolhedora árvore vivia um mocho num dos cavos obscuros, lá para cima. Um melro, bem-falante e trocista, saltaricava de ramo em ramo a observar tudo e diz para o mocho: «imagina que acaba de passar um homem com uma ovelha às costas. E vai com a lã sarapintada de molho de tomate que lhe sinto o cheiro. Eu pergunto a mim mesmo porque é que certos e determinados animais se deixam levar pelos homens. Que é que tu achas?». O mocho nem abriu os olhos: «se perguntas a ti mesmo, responde-te a ti mesmo, mas, por favor, deixa-me dormir».«Sabes o que é que isto me faz lembrar?», insistiu o melro que era uma teimosia, «aquele caso dos tempos em que a gente falava. Um fulano ia com um borrego aos ombros e houve quatro moinantes que não o largaram - "Olhe que leva um cão, leva um cão, leva um cão", horas nisto. Tanto insistiram que o homem se convenceu de que estava a alombar com um cão e se sentiu assaz ridículo. Atirou com o carneiro ao chão e logo os quatro ribaldos empalmaram o bicho e ala! Desta história pode extrair-se a seguinte zloka...» O mocho abriu um olho e ameaçou, com raiva: «ou te calas, ou...». Mas, entretanto, o pastor chegava à rua do monte, pousava no chão o borrego, que emitiu um desconvicto balido e, levando a mão ao boné, desejava: «Ora então muito bons dias, lavrador, lavradora» e olhando para baixo, para o bicho: «cala-te lá, coitadinho, eu cá sei o que estás penando...»
De braços atrás das costas, em calções, o coronel mostrava uma cara petrificada, de boca aberta, como se, proibido por uma certa entidade de olhar para trás, houvera prevaricado. Maria das Dores, de mãos no roupão, aconchegando-o pudicamente ao corpo, foi decidida e directa. «Lavradora era a sua tia! Vá, desembuche, mas é. Que é que você quer?»
Ali decorreram dilatadas, entrecortadas e, em certos momentos, endurecidas negociações. Curioso, o melro na oliveira, de cabecita inclinada, assistiu a tudo. O pastor virou-se para trás e apontou lonjuras, designou a ovelha, cabisbaixo, coçou a nuca, rés à orla do boné, no sítio em que os cabelos mais se desordenam, escondeu a mão no peito, esfregou-a na pelica e exibiu sanguinolentas manchas na palma, que cheirou e sacudiu para o lado...
O coronel coçou rapidamente o nariz e entesou os braços atrás das costas, quase na posição de "firme". Maria das Dores deu um passo para o pastor e falava-lhe agora quase nariz contra nariz. Mãos nas ancas, já parecia ter-se esquecido dos primeiros avisos de pudor, e deixava entrever a alça da combinação.
Eis que o pastor levanta as duas mãos ao alto e, enquanto vai falando, vai-se virando, até voltar inteiramente as costas ao casal e começar a descer a ladeira a caminho da velha oliveira: «Olha», diz o melro, «nem sabes o que estás a perder. O pastor deixou o borrego e vem para aqui, amuado. É fita.» «Porque é que não dormes de dia, como os animais mais respeitáveis, que não têm que se sujeitar a esses teatros dos humanos?», resmungou o mocho, recusando-se a abrir os olhos. «Ai, adoro!», confessou o melro.


in Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina, Mário de Carvalho, Editorial Caminho