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sábado, agosto 14, 2004

Férias
-impressões em diferido-


O parque de São Miguel mais parece um hotel, tão cheio que só com reserva se monta acampamento. Está agora numa incómoda fronteira: o melhor parque do país-campista-que-eu-conheço está tão bom tão bom que é péssimo. Campismo por reservas? Quando faço uma reserva espero encontrar uma cama feita num quarto já montado. Campismo "fino" não é para mim, obrigadinho.

Vale da Telha primeiro, o Serrão logo a seguir e os dias arrastando-se na Arrifana, a praia mais linda do mundo, ex-aequo, felizmente, com diversas concorrentes. E o Alentejo, lá para dentro, onde as pessoas se saúdam nas bermas, onde um contacto verbal é mais uma alegria ao invés de um enfado extra. E o Rabino. Já o venderam, quase dez anos depois, já tem o poste da EDP encostadinho à casa - ou será a casa encostadinha ao poste, que os melhoramentos ainda estão por fazer e sempre são mais de sessenta anos de gentes e criações e chuvas e secas naquele pequenino vale insuspeitado para lá do caminho de terra que parte quase quase de Amoreiras-Gare. O Rabino foi-se, portanto. Não consegui enricar a tempo de comprar o monte onde cresceu mê pai. Nunca ganhei o totoloto, lamenta-se o céptico que jamais gastou dois tostões num boletim. Mas um poucachinho antes, o Salgueiro está à venda, nem vestígio da Lídia ou do seu Celestiano, se não contar o maltratado Aixam aparcado, um ancinho velho e um velho sacho, um carrinho de mão cheio de entulho e o gato curioso e fugidio. O número na placa de venda é da imobiliária, mas eis que por debaixo surge outro número, o do monte novo da Boavista, que é bem mais perto da estação e para onde, venho a saber no telefonema, a Lídia do Salgueiro se mudou mailo seu Celestiano, que a idade e a doença já não permitem tão grandes distâncias até ao lugar, e a morte recente do filho Leonel - que o meu pai Leonel viu nascer - deixa mágoas que se aprofundam demais na ausência prolongada de gente. É bem alentejana, a prima, estivesse só o Celestiano e só morreria no Salgueiro. Mas as mulheres do Alentejo são assim, se o momento o puxar choram muito, mas nunca se entende bem se é mágoa, se é raiva, se é força. Uma coisa sei: rendição, não é. Nem avareza, tampouco. Mas a prima gostava de ficar com o Salgueiro? Atão ligue é p'ra mim, prima, que se for ê quem vende nã dou dinheiro a ninguém e sempre posso fazer por mais baixinho, qu'é p'á prima. Ai, gostava tanto de a ver, mas se nã pode ser, atão fica pá próxima, um bêjinho ao Leonel, que o mê Leonel já cá nã anda, e um bêjinho p'ra si, prima, e p'ró marido [marido? qual marido? sorrio por dentro e não lhe digo que nem é marido nem o mesmo que ela há cinco anos conheceu, é a vida...]

Tomamos o caminho da serra até Aljezur. Os restos de Monchique espraiam-se à nossa frente. A vegetação nova relembra o verão passado, as cinzas e os negros testemunham que a catástrofe só se completou este ano. Nas ruínas queimadas e nos sinais de trânsito pelo fogo transfigurados em monumentos expressionistas ecoam ainda as aflições e o inferno. E por fim, os toros alinhados e os camiões cheios de madeira cantam-nos a prosperidade do negócio, um hino ao esplendor perene da nação. O coração está seco e o maço de cigarros fechado.