Os coisos
Durante uns anos fui amigo/colega/factor-SPAC de um moço cheio de qualidades - acima de tudo artísticas - mas, no campo pessoal, insuportável a vários níveis e de um narcisismo e arrogância por vezes rasando o nauseante. O que mais me marcava era a obcessão pela [homo]sexualidade alheia. Havia sempre um comentariozito a fazer, sem coragem de ser declaradamente homofóbico, mas prenhe de um escárnio desvalorizante e - pressentia eu - assustado. Havia uma vítima recorrente que ainda por cima estudava na mesma zona, tinha sido seu colega e era na altura meu compincha de cantorias. Era sagrado, sempre que surgia no horizonte aquela figura esguia, bizarra e divertida, um cruzamento entre o Tin Tin e o Spirou, eu sabia que o V. ia dizer, de forma forçadamente leve e gozona, mas cada dia com o peso extra da repetição e da desconfiança: Olha lá, o A. assenta no Paté, não é?
A expressão enojou-me bastante, com as suas metáforas escatológicas e matizes realistas. Mais tarde o meu pai tranquilizou-me: parece que o Paté era um cinema onde parava a comunidade homossexual há uns tempos, mas era tão provável que o V. soubesse isso como eu. Sem falar que agora me surgem sempre uns risinhos parvos quando vou ao King e no écran surge o orgulhoso Pathé Cinémas. Adiante.
As minhas respostas foram, obviamente, evoluindo. Começaram evasivas, pá, sei lá, nós somos oitenta, não o conheço assim tão bem e lá porque é extravagante [para os nossos pequeninos padrões] não quer dizer que seja gay, olha que porra!; passaram a directas e secas, parece-me que sim, que é homossexual, V., pronto, satisfeito?; acabaram no directas e brutas, olha lá, mas tu tens algum problema com a sexualidade dos outros, ou será com a tua? As interpelações do V. também variavam, e não deixava de ser sociologicamente interessante ver como um arremedo de homem que reproduzia estereótipos e poses da ponta do cabelo baywatch [vê-lo danado era dizer-lhe, ai, mas o menino hoje está o máximo, tão marés-vivas, sei lá!] até à unha do dedo pequenino metido nos ténis Reebok teorizando quanto aos "cenários" dos outros, as cores das roupas dos outros, o cabelo-no-ar dos outros, o estilo efeminado dos outros, a artificialidade dos outros. Acho que foi depois da última discussão sobre o assunto que o V. deixou definitivamente de me cumprimentar nos corredores da escola.
Era fácil catalogar o V.: homofóbico. Fosse hoje e não hesitaria: o V. era um dos protótipos possíveis de Coiso - um moço/homem giro, inteligente, criativo, mas homofóbico. Claro que isto me fazia uma confusão brutal, mas não tinha lata nem me sentia no direito de lhe perguntar abertamente se afinal o problema dele era uma homossexualidade reprimida por uma brutal crosta e que estava a entrar, definitivamente, em ebulição. Teorias de outros amigos também passavam por aí. Não era normal que um homem como o V. pavlovianamente falasse no Paté de cada vez que o A. ou outro qualquer alvo possível surgisse no horizonte. Era o que nós chamávamos receber o postalinho mas não ter coragem para o abrir.
Escusado será dizer: se acrescentarmos as atracções mal-resolvidas, a nossa relação foi tudo menos simples e acabou num simples Estou-me a cagar para aquele gajo! e num afastamento progressivo que a sucessão de namoradas giras com alma de secretária também ajudou a criar. Depois o V. foi estudar para um país do Norte da Europa, daqueles cuja decadência moral há muito começou e nunca mais soube dele nem, sinceramente, me interessou muito saber.
Já não sei bem, passaram talvez dois anos, talvez um pouco mais. Acabada a pós-graduação, era de esperar que V. voltasse, como acontece com grande parte dos que partem. E V. voltou. Ainda não o vi, mas sei que anda por aí. E ontem cruzou-se com um dos meus espiões no reino de Isaltino, o deposto, espião que entre o espanto e o alívio, veio contar-me: Sabes o V.? Estava a comprar mercearias ainda agora, com outro moço, bem giro por sinal. Eu posso estar enganada, mas parece-me que ele já leu o postalinho e ficou muito contente com o que leu.
O mundo está mais leve. Mais alguém que descobriu que, leia-se o postalinho ou não se leia, não há pior que ser Coiso. É mau para toda a gente, a começar pelo próprio, além de que se faz uma figura de estúpido perfeitamente dispensável e muito pouco sedutora.
Deve estar bem mais giro do que era, o V., sem aquela fronha de medo e preconceito a toldar-lhe o olhar.