Confissão
Há um ano atrás, por esta altura precisamente, parti às três da manhã em direcção a Badajoz num Daewoo Matiz com uma amiga repousando no banco de trás a caminho de pôr em prática a decisão mais difícil da sua vida.
Há um ano atrás aguardava na sala de espera da Clínica dos Arcos observando em meu redor a quase totalidade de mulheres portuguesas, jovens e menos jovens, que aguardavam a sua vez, e de pais mães irmãos namorados amigos maridos portugueses que aguardavam como eu, sem saber que mais fazer para minorar aquela etapa terrível para além de estar presente de corpo e alma. E compreender. E acompanhar. E ter compaixão. É curioso que escasseiem tanto estas capacidades nos abusivamente auto-intitulados de Pró-Vida. Perdoem-me, não é curioso. É revoltante.
Há um ano atrás, escutando a descrição feita pela minha amiga do acompanhamento social, psicológico e médico que a clínica em questão fornece e observando ainda assim o seu sofrimento, muito me revoltei sobre a imoralidade que é penalizar as mulheres ainda mais, obrigando-as a agir fora da lei, a maioria das vezes na vergonha e no isolamento e sem o mínimo de dignidade ou segurança. E pensei nos países que já ultrapassaram o problema, em que a legalização do aborto correspondeu a um menor recurso ao mesmo. Países em que as leis não se submetem eternamente ao obscurantismo e à prepotência de uns quantos que se consideram detentores de uma moral superior e designados por não sei quem para serem os guardas da função sagrada da maternidade de qualquer mulher, seja qual for o seu credo, cor, religião, personalidade, opinião pessoal, quaisquer que sejam os seus sentimentos mais íntimos. Gente que não entende o significado da palavra cristianismo. E para quem a democracia é a parca liberdade dos outros terminar onde começa a sua ampla, pura e santa liberdade. Não tem outro nome o que se passa em Portugal: é fascismo sexual e reprodutivo.
Há um ano atrás, como hoje, não senti vergonha de ser portuguesa. Mas senti vergonha do estado do meu país.