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quarta-feira, setembro 08, 2004

Domingo, 5 de Setembro

Só mais um dia. O corpo vai agradecer o descanso, o espírito agradecerá a renovação, a energia acumulada, a alegria e a vontade de continuar a lutar por este mundo e pela vida. O dia começa com a prometida visita à Cristina e, para não variar, regressa-se ao Espaço Internacional para carregar baterias para o que nos espera. Interpelados por um camarada catalão, é tempo de passar os olhos pelo Avant e ler o que Jordi Miralles tem a dizer acerca das medidas impulsionadas pela coligação de esquerdas e ecologista que desde os finais do ano passado governa a Catalunha: ampliação de 2 000 novos docentes, 163 novos médicos para a assistência primária, compromisso de 42 000 novas habitações de protecção oficial, um acordo para a ocupação e a internacionalização da economia catalã, a aprovação de 30 000 novos lugares no ensino infantil dos 0 a 3 anos, a protecção dos últimos quilómetros de costa não construídos. Esquerdas unidas e ecologistas: na Catalunha eu já não seria apenas um lírico. Definitivamente nasci ainda mais de 600 km à esquerda…

O estômago hoje leva-nos até Timor e a umas espetadas absolutamente divinais. Dentro da banca um dos cozinheiros passa a vida a reclamar – percebêmo-lo pelo tom, não pelo tetum - com os colegas, que ele sente não lhe acompanharem o ritmo. Está tudo disfarçadamente divertido com aquele homem pequenino e de voz aguda e que sempre que tem quatro espetadinhas prontas grita para o ajudante, com ar impaciente: -Éeeeehh, cômándánte! Mas quem com ferros mata com ferros morre, e a gargalhada geral rebenta quando o paciente ajudante, de tabuleiro na mão e aproveitando um momento de distracção do diligente cozinheiro, lhe berra ao ouvido, imitando-lhe o timbre e o tom: -Éeeeeh, cômándántéeee!!! O almoço é concorrido e tem de ser engolido rapidamente, se queremos apanhar o Vasco Gonçalves no Pavilhão Central. O ritmo dos batuques “Raízes de Cabo Verde”, ajuda a manter a cadência mastigatória, e em pouco tempo o entusiasmo do palco ali mesmo ao lado alastra para a plateia de costas para nós, que nos presenteia com uma espontânea sessão de anca a abanar. São maioritariamente brancos bem intencionados, mas alguns parecem mesmo ter já rebentado com o cinto de castidade invisível e intransponível com que a cultura europeia nos vai apertando com o avançar dos anos, que nos paraliza os quadris e nos torna uns belos monos. É bonito de se ver.

No Pavilhão Central discute-se o 25 de Abril. Vasco Gonçalves está velhinho, fala calma e claramente e a sua lucidez é impressionante. Apesar de tudo ficamos todos com a sensação de que no debate acaba por se lamentar demais e projectar de menos e acabamos por sair pouco depois da intervenção de Domingos Abrantes. Não sem antes ouvir duas intervenções do público, uma das quais me tocou bastante. Um homem de cerca de 50 anos fala da depressão por que passou, da dificuldade que é viver sempre contra a maré. Da tristeza que sente ao ver que não há reconhecimento aos comunistas, mas, acima de tudo, ao ouvir que “os partidos são todos iguais”. É nossa obrigação, diz, para com o Partido e para com todos os cidadãos, refutar essa afirmação sempre que ela surja e demonstrar porquê. E é obrigação do Partido procurar mais humildade e tolerância que o aproxime dos eleitores que constantemente lhe voltam as costas. O aplauso da assistência é caloroso eu participo honestamente impressionada com aquele homem, com a forma tão verdadeira como se apresentou, sem defesas, sem slogans. No Público de segunda-feira diz-se que o que se aplaudiu nessa intervenção foi a queixa de que o povo não tem gratidão para com o PCP, apenas e só, sem mais. Deve ter-se distraído com alguma mosca, o repórter, ou tem problemas graves com a noção de contexto. Mas esta leitura da Festa é comum nos media, a malta está habituada. A segunda desova deste blogue consiste precisamente numa resposta minha a uma crónica de EPC sobre a Festa – onde este, aliás, aparentemente não esteve presente - absolutamente básica e tosca. Eu, que tanto gosto de o ler, apressei-me a enviar uma carta ao director com a dita resposta: escusado será dizer que a carta nunca foi publicada, por mais que JPP [o Pereira] grite que a esquerda tomou os media de assalto. Mas isto tudo deixa-me a pensar. Nas minhas próprias neuras, na depressão que a P. me narrara na véspera, a caminho do concerto do Sérgio Godinho, no difícil e cruel que é, neste mundo, ser-se fiel a si mesmo e, sobretudo, não aceitar que haja quem nasça para estar por cima e quem nasça para estar por baixo. Especialmente quando tantos dos que estão por baixo gritam aos sete ventos que não são capachos ao mesmo tempo que lhes esfregam as solas na cara. Temos de ser fortes e autónomos. E temos de nos lembrar que candeia apagada não alumia o caminho. E que não somos nem devemos ser responsáveis pelas escolhas do nosso irmão, nem por ele mesmo a não ser que ele nos peça para sê-lo. É preciso distância, querida P., é preciso, apesar de tudo, auto-preservação.

Seguimos para o Centro do Livro, onde a catástrofe está sempre iminente e este ano – como em tantos outros – se concretizou. Zusammenfassung:
- Primeiro Livro de Poesia, selecção de Sophia de Mello Breyner com ilustrações de Júlio Resende, Caminho, para o Buba;
- Dual, de Sophia, Caminho
- Um deus passeando pela brisa da tarde, de Mário de Carvalho, Caminho
- Quatrocentos Mil Sestércios seguido de O Conde Jano, idem
- Gente descartável – A nova escravatura na economia global, de Kevin Bales, Caminho, Col.Nosso Mundo
- O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking, Gradiva
- Água em Pena de Pato, de Mário de Carvalho, Caminho [é uma obsessão cá de casa, confessamos, o Mário de Carvalho, não os patos]
- Poesia, Textos, Teatro, Bertold Brecht, Dinossauro [outra obsessão, definitivamente]
- Fúria, de Salman Rushdie, Dom Quixote [Deixa-me ler primeiro, Tiago, a gente depois fala]
- Animal Tropical, de Pedro Juan Gutiérrez, Dom Quixote
- Potentes, prepotentes e impotentes, de Quino, Teorema [mais uma saudável obsessão]

E assim se vão trinta [aaaarrrghhhh!] contos…

O cd do Kommunix 1.0, sistema baseado no Linux que o Bruno me apresentara no sábado no Café-Concerto, visivelmente orgulhoso, já esgotou no Espaço Novas Tecnologias da Informação, aliás como seria de esperar. Resta ir espreitando o site do PCP de vez em quando e esperar uma reedição que é quase certa.

O pulo da praxe à Atalaia, para deixar livros e provar uma patanisca. Pelo caminho ainda se apanha um pouco do som possante dos Betagarri, com muitos fãs na Festa, e como já seria de esperar, a minha mãe tem os concertos da véspera no 1.º de Maio para relatar. O público não queria que Laginha e Sassetti saíssem do palco. E eles não queriam sair. Logo a seguir, “os vitorinos” [ó mãe, eles são os dois Salomé, Vitorino é só um] partiram a casa toda e puseram toda a gente a gritar que Fascismo nunca Mais. Eu acho sempre que vale a pena repetir isto, parece-me que anda muito boa gente por aí que ainda não ouviu bem. Fascismo Nunca Mais!

E ao descer da Atalia apanhamos novamente os Tocá Rufar abrindo caminho até ao palco para o comício. A única coisa que penso quando vejo estes putos é que quando for pequenina quero entrar também…



O comício… bem, um comício é um comício. Um rebuliço de energias. Eu confesso que já não estou num comício como peixe na água, mas não tenho grandes dúvidas de que é preciso fazê-los. E se o dirigente da Jota gaguejou um bocadinho, sem conseguir verdadeiramente prender a atenção de ninguém, e o discurso do Casanova qualquer dia pode ser dito de cor pelos presentes, por seu lado ninguém me consegue convencer a não gostar do Carvalhas. É irónico e inteligente e sssofre muito porque a malta sssssó ouve a forma como ele fala, nem tanto o que ele dizzzzz. Os pontos atacados foram os esperados, e não me venham falar em cassetes que se querem que o suporte mude o sistema de som também tem de mudar. E digam o que disserem, este mundo continua prenhe das mesmas merdas há muito, muito tempo. Isso é que já chateia! Não, eu também não quero alinhar na “pedagogia da resignação e do fatalismo” que Carvalhas denunciou no ser discurso. Não quero e não vou. Por isso o aplaudi. E gosto de ir para o meio do maralhal, porque vistos de longe os comícios parecem sempre mais consensuais do que são realmente e até nos esquecemos de que há motivações diferentes e perspectivas bastante diversas entre aquelas pessoas que ali erguem os punhos. Eu não quero esquecer-me. Acabam os discursos e é realmente indescritível assistir ao Avante Camarada! e à Internacional cantados por aquele enorme coro abraçado. Finalmente o Hino do Keill – cujo texto está bem mais seguro nestas gargantas do que o dos hinos anteriores, ó espanto dos espantos – e o encerramento do comício. Toda a gente aguarda a Carvalhesa. Começam os bombos. E rapidamente a dança desvairada rebenta e as zonas de mosh alargam-se. Para um partido que nos seus comícios só tem velhotes, como nos querem fazer crer, olhem que a malta está numa forma do caraças!

É preciso ir jantar, que a noite adivinha-se agitada e o arroz de marisco chama por nós no Algarve. Recarregadas as energias para as mulheres da noite, corre-se para o 1.º de Maio para ouvir um pouco do concerto da Aldina Duarte. Não fiquei satisfeit@, mas tenho de fazer uma visita ao Sr.Vinho. Aqueles primeiros quatro fados pareceram-me bastante prejudicados pela pouca familiaridade de Aldina com o microfone. Gosto demasiado do disco dela para me ficar por aqui, tenho de ir tirar teimas mais cedo ou mais tarde. A Mísia, segundo a minha mãe, pôs a seguir toda a gente a chorar. E nem sequer canta preferencialmente o fado da desgraçadinha…

O Rui Veloso aparentemente fez um concerto de baladas do qual fugimos a sete pés, mas ainda ouvimos cá em baixo o Chico Fininho quase no fim. Subamos, senhores, subamos, que a Manela Azevedo é mulher para se ver de perto e é preciso marcar lugar no carrossel dos esquisitos. Que dizer dos Clã, meus amigos, que dizer da Manuela Azevedo? Ainda não tinha ouvido Rosa Carne ao vivo e valeu cada segundo. Adoro o trabalho desta gente, no estúdio e no palco, comovem-me, arrastam-me, quase me fazem desejar voltar às bandas de pop-rock nas quais tive o primeiro contacto real com o público. É preciso amar a vida para se poder gritar sem reservas: Que se foda o GTI!!! O concerto tem de terminar, o Rui Veloso alongara-se e ficamos todos com aquela sensação horrível de coitus interruptus. A Manela podia ter terminado doutra forma, em vez de com um sério “Não nos deixam tocar mais uma”, até porque as regras não são as da organização, mas eu amo-a na mesma, não quero saber. Compreendo o choque que é não poder terminar um espectáculo daqueles. Mas espero que, como nós, ela tenha lavado as suas mágoas ao som da Carvalhesa. E que, como nós, regresse no ano que vem.