Sábado, 4 de Setembro
Hoje ainda não custa levantar da cama, amanhã me dirás. Vamos cedinho, quer dizer, assim que o Puto e o Daniel conseguirem arrastar-se até Lisboa. Uma feijoada PeTista e uma caipirinha aguardam-nos no Espaço Internacional.
Vamos até à tenda dos discos procurar a Cristina, que nos aparecera à frente na noite anterior no meio de um concerto de gaiteiros no Palco Arraial. É a única banca que ainda não abriu, diz-me a Inês que inesperadamente lá encontro. A festa deve ter sido rija. Procura-se um amigo, encontra-se outro. Então, estás boa, há tanto tempo, que tens feito? Eu tenho sempre tendência a dizer que as pessoas estão com bom ar, ou a não dizer nada se se passar o contrário. Infelizmente a recíproca comigo não costuma ser verdadeira, e curiosamente sucede sobretudo com outras mulheres. Então, muito trabalho? Muito, respondo eu, contente. Pois, oiço de volta, estás magrita e com olheiras. Deixei de ter pachorra para continuar conversas assim. Resultado, então adeus, boa Festa e costas voltadas que pela frente tenho muito mais coisas que valem a pena. Fica para aí a pensar como é que será que eu faço para não engordar, que a receita não passa a existir por causa disso. Para mim, que desde os 16 anos não ultrapasso os 50 quilos, ouvir constantemente “estás tão magrinha” equivale a ser coxo e ouvir “olha que estás mais manco, pá”. É patético. Pronto, já desabafei.
A tarde é passada entre o Café-Concerto e o pavilhão central, espaço a que os três dias de festa nunca me permitem dispensar a atenção devida. Bem, é certo que quando o Sr.Van Gogh nos visitou ninguém me arrancava lá de dentro, mas pronto, este ano fiquei-me pela exposição sobre a história do país desde a fundação do PCP em 1923 e sobre o 25 de Abril e já não foi pouco. Merecia outras salas, merecia visitas de estudo – ou antes, os estudantes mereciam esta exposição. Seria uma bela surpresa para quem esperasse um visão sectária do Portugal do século XX. Ora no pavilhão central, os painéis alusivos às transformações democráticas, à igualdade de direitos, às eleições livres e à reforma agrária eram quase totalmente escondidos por um grupito muito descontraído que relaxava e enrolava ganzas. Cansada de constantemente fazer papel de polícia nestas situações, limitei-me a torcer-me e retorcer-me para conseguir espreitar por detrás das costas dos filhos da revolução, tão simbolicamente voltadas para ela. Eles, como seria de esperar, nicles. Surge então um camarada da organização, com uma veeeery long face e um tom sério: -Os amigos não se importam de ir fazer isso lá para fora? Eles acedem, algo intimidados por tanta gravidade. Logo a seguir, outro camarada vem aliviar a tensão, Isto não é problema nenhum, é que é o espaço central da Festa, eu até fumava uma também, compreendam e tal. Eu, de braços cruzados, esperava ouvir qualquer coisa sobre o facto de estarem a tapar os painéis da exposição, impedindo toda a gente de vê-la convenientemente. Nada, nem uma palavra. Prioridades. Mas que porra de prioridades, ó camaradas!
Próxima paragem, os Açores e a morcela mais picante que comi nos últimos tempos. Bendito ananás! A Cristina foi entretanto ter ao 1.º de Maio, onde tencionávamos ouvir Zé Eduardo e compinchas A Jazzar no Zeca Afonso. A fome falou mais alto e a morcela ganhou. A Cristina voltou ao seu posto com a promessa de uma visita breve que só se viria a realizar no domingo. Esta Festa não se compadece dos planos. Mas abre aos encontros as mesmas portas que aos desencontros.
A tarde fecha-se novamente no 25 de Abril, com os Gaiteiros de Lisboa. É engraçado como há anos em que quase não assisto a concertos neste palco, este ano é mesmo atípico para mim. Mas os Gaiteiros arrancam-me a qualquer outro palco. Carlos Guerreiro inicia o concerto com uma piada inaudita: Santana Lopes é Primeiro-Ministro de Portugal! É um cómico, este gajo. E pôs tudo a rir, lá isso… Lagarto, lagarto, lagarto! Hã? Ah, eu pensava que isto tinha sido tudo um pesadelo, mas afinal… Merda! Bom, os Gaiteiros são os Gaiteiros. A nossa música mais autêntica é uma fonte de alegria e entusiasmo contagiantes. Olho à volta: não sou só eu que conheço algumas letras de cor. E sabe bem. A vedeta Zé Salgueiro teve direito a um solo de tambores para o qual a meio resolveu chamar o mais novo dos elementos do grupo, que eu não conhecia e de cujo nome não me lembro, o que lamento profundamente - além de tocar bem é giro que se farta. Foi absolutamente espantoso, ver a improvisação conjunta a acontecer, a sincronia, a comunicação, a música. O público ficou doido e com razões para isso. Só uma hora, duram estes concertos. Mas alguns, como este, parece que nem dez minutos levam. Os Tocá Rufar invadem o palco como introdução ao círculo de percussão dirigido por Rui Júnior do alto da torre de som. O público junta-se à volta e começa o concerto de palmas, gritos, garrafas e outros instrumentos, a que se juntam os tambores acabadinhos de chegar do palco.
Jantar onde? Na Atalaia, pois claro. O meu pai conta histórias e ouve histórias, as filhas do Zé e da Faustina vão e vêem com os filhos pela mão ou na barriga e tão longe parece já o tempo em que o Partido alugou uma casa na rua da loja dos meus pais, em que eu e a Valentina éramos miúdas e amigas e a União Soviética apenas para as mais velhas, nascidas na clandestinidade, era um segundo lar, entretanto transfigurado e falecido. A minha mãe gaiteira continua a pular. Planos para a noite? A indecisão partilhada entre o Sérgio Godinho e as Grândolas do Laginha e do Sassetti. Logo se vê para onde levam os passos, mas as saudades dos amigos falam mais alto e para o Sérgio Godinho zarpámos. Segundo a minha mãe, fizemos mal. Mas rever o Cabrita, o Miguel e a Mariana e, claro, o próprio Sérgio, são o complemento que justifica a escolha. Ainda temos o brinde de assistir ao aparato Pedro Abrunhosa, que até aqui tem seguranças da porta do camarim até ao palco. Enfim, teve azar, nasceu no país errado. E bem que podia arranjar um vocalista – aliás , já lá tem um, chama-se Diana Basto. Mas chega de maledicência. Assim se acaba a Festa, hoje em conversas de bastidores, amanhã será novamente do outro lado.