Sexta-feira, 3 de Setembro
À última e em boa hora lá a vontade vence a preguiça. Ala, que hoje temos três pianos no Palco 25 de Abril e muito funáná no 1.º de Maio. Coragem para enfrentar o caminho para a margem sul numa sexta à tarde de fim de verão. Vamos antes pela Vasco da Gama, que ainda gostava de chegar lá hoje.
Chegando à Amora, circundando os acessos à Quinta, algo de diferente se começa a sentir. Para primeiro dia de festa, a movimentação parece muita. E é muita. Não me recordo de ver recentemente a festa tão cheia num primeiro dia. Agora que o fim-de-semana passou, acho que não vi a festa assim tão cheia em anos recentes. Sinal dos tempos, diziam-me ainda agora. Talvez isso, talvez o culminar de um ano sem férias com comes e bebes, cultura, debates e gente, muita gente, de todos os tamanhos e feitios, de todas as idades, de todas as tendências. Parece que o Marcelo Rebelo de Sousa anda por cá hoje, veio ver a orquestra. Pois claro. E só lhe fica bem. A festa não é só dos comunistas, portugueses e estrangeiros, e é esse o grande orgulho dos que a constroem. Num país cada vez mais fechado, não deixa de ser bonito ver aqueles que estão sob fogo constantemente, aqueles que são acusados de cinzentismo e cristalização, serem capazes de parir uma cidade de liberdade como esta. Onde encontro sempre amigos, filiados no PCP, eleitores da CDU, do Bloco, do PS, do PSD [lamento, do PP não tenho conhecimento de nenhum], ateus, cristãos, judeus, muçulmanos, budistas, freaks e malabaristas, velhos que trazem a vida cravada na cara, crianças de colo, putos que pulam ao som da Carvalhesa, tambores e trombudos, debates, cantorias e cabeçudos. A olhos renitentes, talvez pareça um jardim zoológico. Para nós, meros animais vivos que a conhecemos quase como a nós mesmos, a festa é energia e vida.
Já se foi o pão com chouriço do Magoito, está na hora de dar um pulo à esplanada da Atalaia e dar um beijo aos meus pais, devidamente acompanhado por uma sangria e uma bela bifana. A minha mãe está linda, uma mulher que tem sido tão triste e tão amargurada está a transformar-se numa velha gaiteira, divertida e sedenta de vida. Até me sinto orgulhos@, vendo-a de lenço na cabeça a servir pataniscas aos saltinhos atrás do balcão [onde passou quase toda a vida], ao ritmo dos bombos da Carvalhesa. É mágico, este tema, rastilho de danças e de sorrisos entre praticamente todos os visitantes da festa. O poder da música há-de intrigar-me sempre. Há-de maravilhar-me sempre. Rever o Zé Carlos e a Faustina, se outros encontros o ano não proporciona, este é certo, seguro e esperado. Ouvir conversas, sorrir com os desacordos entre os comunistas de coração e os de cabeça, pensar, ainda bem que os há tão diferentes, ao contrário do que no geral se imagina. Já não me sinto um deles, definitivamente, mas continuo a ter por eles carinho e gratidão. E continuo a sentir que a minha luta é também ao seu lado, que a sua experiência e a sua visão estão longe de ser meros detritos de um passado de idealismo e entrega, que a desilusão e a defesa em dureza e rigidez tantas vezes transformam. E fico sempre feliz de ver que entre os que mais deram, muitas vezes entre os que mais sofreram, se encontram os mais felizes, apesar de tudo, os mais alegres, os mais abertos. E entre os que viram sofrer e esperaram, os mais amargurados e difíceis. Há uma lição de vida à espera em cada canto do mundo. Em cada canto da Festa também.
Espera-nos o 25 de Abril, Mozart, Bach e Händel, Rosado, Burmester e Laginha, a Sinfonietta de Lisboa povoada de amigos e colegas, dirigida pelo insigne maestro Vasco Azevedo, grande revolucionador da classe de orquestra na Escola Superior de Música de Lisboa [só falta construir um auditório decente, mas devem estar à espera que no intervalo dos ensaios o homem acarte também com algum tijolo]. Em que outro auditório se pode ouvir o concerto em Dó Maior enquanto se fuma uma, digam lá? E ter ao lado malta de outras várias gerações a lidar connosco da mesma exacta forma, antes, durante e depois? How’s that, for grey and reacctionary, han? O que interessa: a abertura das Bodas de Fígaro, muito bem, orquestra segura e com balanço, um Mozart com humor, com corpo e leveza. Enfim, um Mozart. O concerto em Dó Maior: sou fã do António Rosado, definitivamente. Gosto de o ouvir, gosto de seguir-lhe as mãos. As condições da Festa melhoram de ano para ano e o som do piano estava admirável, se descontarmos uma certa falta de corpo nos graves. O conjunto funcionou, na orquestra já se ouvem resultados do trabalho que, contra tudo e todos, se vai conseguindo fazer neste país. Um som consistente, mas maleável e vivo. Parabéns, pessoal. Parabéns, Vasco.
Com Bach, a coisa fia mais fino, e as condições revelam a sua ingratidão. No concerto a dois pianos, Pedro Burmester e Mário Laginha deram um ar da sua graça, mas o som não se compadece com tal filigrana e any further comments will be vain. O concerto para três pianos e orquestra, por seu lado, arrancou logo mal, com um tutti que não percebi onde começou e metade da orquestra também não. Rapidamente se acertaram os ponteiros, mas Bach é Bach e de facto não se safa com som captado e um palco daquelas dimensões ao ar livre. É a minha modesta opinião. E já agora, quando é que poderemos ouvir outras músicas, nomeadamente alguma da música erudita que por cá se faz? Não me parece de acordo com o espírito da Festa, reduzir a música erudita a Bach, Mozart e Beethoven - que me perdoem estes três deuses por usar esta horrível e mentirosa expressão, "reduzir", mas acho que me entendem...
Para um final em grande, a música para os Reais Fogos de Artifício, que desta vez eram vermelhos e não azuis. Que se pode dizer? Entre os rebentamentos de fogos e a festa de Händel no palco obviamente não há comentários musicais a fazer, que eu estava lá para me divertir. E assim se disse adeus no 25 de Abril ao primeiro dia de Festa. Mas no 1.º de Maio, Lura ainda ateava o fogo crioulo e o meu mano Daniel arregalava os olhos e os ouvidos e sussurava: -Isto não se aprende em escola nenhuma, bolas. Queriam saber como foi? Desculpem, não consigo. Uma mulher daquelas e uma voz daquelas não se descrevem, fruem-se. Só me ocorre reproduzir o último parágrafo do que sobre ela diz o programa: Dêem-lhe um causa e a voz desta mulher transforma-se em chicote. Dêem-lhe um chão e será raiz. Dêem-lhe uma raiz e será flor.
Regresso a casa, bicha para entrar na nacional, já é praxe e é até bom sinal. Só amanhã saberei, pelo meu Puto, que a nossa velha gaiteira esteve a noite toda a dançar ao som de Lura, no outro extremo do pavilhão.