Aos invisíveis
Tóquio, Janeiro de 2000
Fotografia de Manel da Truta
A noite passada acordei com o teu beijo
descias o Douro e fui esperar-te ao Tejo
vinhas numa barca que não vi passar
corri pela margem até à beira do mar
até que te vi num castelo de areia
cantavas "sou gaivota e fui sereia"
ri-me de ti "então porque não voas?"
e então tu olhaste
depois sorriste
abriste a janela e voaste
A noite passada fui passear no mar
a viola irmã cuidou de me arrastar
chegado ao mar alto abriu-se em dois o mundo
olhei para baixo dormias lá no fundo
faltou-me o pé senti que me afundava
por entre as algas teu cabelo boiava
a lua cheia escureceu nas águas
e então falámos
e então dissémos
aqui vivemos muitos anos
A noite passada o paredão ruiu
pela fresta aberta o meu peito fugiu
estavas do outro lado a tricotar janelas
vias-me em segredo ao debruçar-te nelas
cheguei-me a ti disse baixinho "olá"
toquei-te no ombro e a marca ficou lá
o sol inteiro caiu entre os montes
e então tu olhaste
depois sorriste
disseste "ainda bem que voltaste"
Sérgio Godinho, Pré-histórias, 1972