Carla
Um nome fica, deste filme. Carla. A personagem de Beatriz Batarda, o patético mártir de uma tragédia inevitável, disputando semi-clandestinamente com a mãe Rita Blanco a posição de mulher do pai Fernando Luís e educadora da irmã mais nova Cleia Almeida. Educadora sem aspas, pois se o mundo é a noite, os códigos e as defesas serão os da noite. E o da noite portuguesa, do alterne refém das máfias, dos erros que arrastam vidas e dignidades.
O filme é, como já escrevi antes, um portento. A realização próxima, humana, suja, um som irrepreensível - coisa rara na produção nacional, como sabemos - sem o qual seriam impossíveis os diálogos simultâneos, as coreografias de palavras entre duas cenas paralelas no mesmo plano. É talvez este um dos efeitos mais bem conseguidos e mais impressionantes do filme: personagens juntas no espaço e diversas no objecto, por fim trocando posições de emissão e recepção, baralhando as cartas, mas seguindo um caminho comum ainda que constantemente silenciado, meio-dito, até meio-pensado. Mas representado de modo sublime e coincidentemente filmado, o mundo de Carla, aborto do mundo que cria e destrói Carlas. O mesmo mundo desde a Ifigénia original.
Não nos deprimamos demasiado, no entanto: neste mundo também se constroem Batardas. E Canijos.