Religare
Eu, que cresci sob a poderosa influência de um pai ateu militante no meio de mulheres religiosas e/ou disfarçadamente supersticiosas, tenho passado por várias fases. Tinha eu quatro anos quando o meu pai achou por bem proibir a minha avó Rosa de me levar à missa, já que eu chegava a casa muito sofrida com a desgraça daquele senhor que lá estava pregado de braços abertos. Mais tarde fui ateia militante, perseguindo a mesma pobre avó com as quadras anti-clericais do Aleixo pelos corredores da casa. Já sofri também de “inveja da fé”, sobretudo no confronto com a morte. Entrei no caminho irreversível da dúvida com as experiências de felicidade e comoção extremas pelas quais passei como veículo da mais extraordinária música religiosa [sobretudo Bach, claro, sobretudo com Frans Brüggen, naturalmente, mas não só]. As angústias, as esperanças, os símbolos, de tudo isso me aproximei, de tudo melhorei a minha compreensão através da arte. Compreendi finalmente o que racionalizara ainda no ciclo preparatório e no secundário, com o estudo, com as discussões filosóficas, com as provocações aos professores –nunca nenhum professor me conseguiu explicar, nem mesmo um ex-seminarista, por que raio é que se a Bíblia diz que os doentes é que precisam de médico, a senhora de Fátima só faz milagres com beatos e a mim, que sou ateia, nunca me apareceu ninguém. Tantas perguntas para nenhumas respostas.
Hoje atrevo-me a dizer que a religião, como conceito, não só não me repugna como me parece indispensável. Antes que fiquem com olhos de boga, tentando perceber se entrei na Twilight Zone, devo esclarecer que encaro o conceito da sua perspectiva etimológica, de "religare". Ou seja, de uma consciência adquirida ou descoberta de que sou, como indivíduo, parte de um todo maior. Um todo social, animal, vegetal, mineral, ambiental e, last but not least, energético e universal. Um todo em que o livre arbítrio convive com o que nos transcende, com o que não compreendemos ou verbalizamos, mas intuímos, disputamos, partilhamos, vivemos. Há quem goste de lhe chamar Mãe Natureza, nomes de deuses vários ou de um deus só. Eu gosto de lhe chamar nada. Pelo simples facto de não saber –nem me arrogar a capacidade de adivinhar- se existe um absoluto por cima de tudo isto. Ainda tenho umas conversas a terminar com a Vermelha, a ver se de facto me encaixo no Taoísmo. Mas querida Rojita, conhecendo-me tu tão bem, hás-de concordar que o mais certo é ficar pelo menos com uma perna de fora do encaixe, não achas?...
Em suma, para mim existem várias formas nobres e absolutamente não fanáticas de se praticar a religião. A arte, a filosofia, a ciência, tudo o que simultaneamente nos lança para dentro e para fora de nós próprios, tudo o que nos ajuda a encarar as dúvidas com espírito aberto ao invés de dogmas, tudo o que nos mantenha flexíveis e inteiros, como seres intuitivos, energéticos, emocionais e racionais, parcelas preciosas de um todo que se esconde dentro de cada ser humano. Podem dizer-me que isto tem muito mais a ver com uma formação pessoal completa e humanista do que com religião. Seja. Para mim, compreender que sou insignificante e forte ao mesmo tempo, causa e efeito, positivo e negativo é a minha forma de me religar. Aceitar que não existe um sentido para isto -ou se existe por que razão é que nós, no meio desta imensidão interminável e em expansão a que chamamos universo havemos de algum dia compreendê-lo?- é o sentido que encontro e chega-me. Se algum dia, por hipótese, se descobrisse a razão de tudo isto, o princípio e o fim, a forma e os moldes, aposto que nenhuma das fábulas actualmente em circulação se revelaria exacta. O que não lhes retira importância ou legitimidade. São fruto da nossa consciência, da nossa criatividade, da nossa fragilidade, acima de tudo, dos nossos medos. São, portanto, absolutamente humanas e falíveis. Relativas. Pessoais, comunitárias, contingentes até, muito mais contingentes do que os eruditos das várias confissões gostariam de admitir. E aqui faço, então, uma distinção que considero importantíssima: religião não é o mesmo que fé, mas sobretudo não é o mesmo que confissão. Pode até, esta última, revelar-se algo de diametralmente oposto, a partir do momento em que não procure ou fomente uma autoconsciência, antes a reprima para a normalizar e manietar. Isto para mim é o oposto do conceito de religião.
O que me leva, finalmente, ao motivo deste post: este texto do Miguel, com o qual concordo absolutamente. A polis não é o espírito. Por muito longe que os debates teológicos nos pudessem levar, por muito apaixonantes que possam ser, não podemos por eles reger as liberdades e a cidadania e sobretudo não podemos admitir que uma ou mais confissões específicas o façam. Porque o respeito e a convivência são uma via de dois sentidos. Porque o verdadeiro religioso deveria ter consciência da sua falibilidade antes de começar a bradar proibições e regulamentos que gostaria de ver adoptados mesmo por quem vê, sente e se religa de outro modo. Porque sem respeito pelo indivíduo, qualquer moralidade é oca.