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sexta-feira, janeiro 21, 2005

Programa para o fim-de-semana

-Senhores, apraz-vos escutar um belo conto de amor e de morte?...
-Nada no mundo poderia agradar-nos mais.


(...)Que o acordo do amor e da morte seja aquele que provoca em nós as ressonâncias mais profundas, é um facto que à primeira vista estabelece o prodigioso êxito do romance. Mas há outras razões mais secretas, para aí vermos como que uma definição da consciência ocidental...

Amor e
morte, amor mortal: se não é toda a poesia é, pelo menos, tudo o que há de popular, tudo o que há de universalmente comovente em nossas literaturas, e nas nossas mais antigas lendas, e nas nossas mais belas canções. O amor feliz não tem história. Só existem romances de amor mortal, isto é, do amor ameaçado e condenado pela própria vida. O que exalta o lirismo ocidental não é o prazer dos sentidos nem a paz fecunda do casal. É menos o amor realizado que a paixão de amor. E paixão significa sofrimento. Eis o facto fundamental.

Mas o entusiasmo que mostramos pelo romance (...), o erotismo idealizado em toda a nossa cultura, na nossa educação, nas imagens que são o ornamento de nossas vidas, e, finalmente, a necessidade de evasão exasperada pelo tédio mecânico, tudo em nós e à nossa volta glorifica a tal ponto a paixão que acabamos por ver nela uma promessa de vida mais viva, uma força que transfigura, qualquer coisa que estaria para além da felicidade e do sofrimento, uma ardente bem-aventurança.

Na «paixão» já não sentimos «o que sofre» mas «o que é apaixonante». E, todavia, a paixão de amor significa, de facto, uma infelicidade. A sociedade em que vivemos e cujos costumes não mudaram, sob este aspecto, através dos séculos, reduz o amor-paixão, em nove de cada dez casos, a revestir a forma de adultério. E pressupondo embora que os amantes invocarão todos os casos de excepção, a estatística é cruel: refuta a nossa poesia.

Viveremos nós em tal ilusão, em tal «mistificação», que esqueçamos
verdadeiramente essa infelicidade? Ou devemos acreditar que em segredo preferimos o que nos magoa àquilo que pareceria satisfazer o nosso ideal de vida harmoniosa?

(...) Afirmar que o amor-paixão significa, de facto, o adultério, é insistir na realidade que o nosso culto de amor mascara e simultaneamente transfigura; é pôr em evidência o que esse culto dissimula, recalca e se recusa a dar nome para nos permitir um abandono ardente àquilo que não ousaríamos reivindicar. A própria resistência que o leitor oporá ao reconhecimento de que a paixão e adultério se confundem*, o mais das vezes, na sociedade que é a nossa, não será uma primeira prova deste facto paradoxal: que queremos a paixão e a infelicidade desde que nunca confessemos que as queremos pelo que são?

Para quem nos julgasse através das nossas literaturas, o adultério pareceria uma das ocupações mais notáveis a que os ocidentais se entregam. Rapidamente se elaboraria a lista dos romances que a ele não fazem qualquer alusão; e o exito obtido pelos outros, a complacência que despertam, a própria paixão empregada, por vezes, a combatê-los, tudo isso elucida bastante sobre os sonhos dos casais num regime que fez do casamento um dever e uma comodidade. Sem adultério, que seriam todas as nossas literaturas? Elas vivem da «crise do casamento». É provável também que a mantenham, seja porque «cantam» em prosa e em verso o que a religião considera como um crime e a Lei como uma contravenção; seja, pelo contrário, porque daí extraem um repertório inesgotável de situações cómicas ou cínicas. Direito divino da paixão, psicologia mundana, êxito do «triângulo» no teatro - quer se idealize, se subtilize ou ironize, que se faz senão trair o tormento inumerável e obcecante do amor em ruptura com a lei? Não será uma procura de evasão da sua horrível realidade? Dar à situação um aspecto de mística ou fazer dela uma farsa é sempre confessar que ela é insuportável... Mal-casados, decepcionados, revoltados, exaltados ou cínicos, infiéis ou enganados: quer na realidade ou em sonhos, no remorso ou no receio, no prazer da revolta ou na ansiedade da tentação, há pouca gente que se não reconheça pelo menos numa destas categorias. Renúncias, compromissos, rupturas, neurastenias, confusões irritantes e mesquinhas de sonhos, de obrigações, de secretas complacências - metade da infelicidade humana se resume na palavra adultério. Apesar de todas as nossas literaturas - ou talvez por causa delas, justamente - pode parecer por vezes que não se disse ainda nada sobre a realidade dessa infelicidade. E que certas questões das mais
ingénuas, neste domínio, tenham sido mais das vezes resolvidas do que propostas...**

Por exemplo o mal verificado: deve a culpa ser lançada sobre a instituição do casamento ou, pelo contrário, sobre «qualquer coisa» que a arruine no próprio cerne das nossas ambições? Será, de facto, como muitos o pensam, a chamada concepção «cristã» do casamento que causa todo o nosso tormento ou, pelo contrário, será uma concepção do amor que não vimos que irá talvez tornar esse laço, desde o início, insuportável?

Verifico que o Ocidental ama
pelo menos tanto aquilo que destrói como o que «assegura a felicidade dos cônjuges». Donde pode vir uma tal contradição? Se o segredo da crise do casamento é simplesmente a atracção do proibido, donde nos vem esse gosto da infelicidade? Que ideia de amor trairá ele? Que segredo da nossa existência, do nosso espírito, talvez da nossa história?

Denis de Rougemont, O Amor e o Ocidente, Livro I - O mito de Tristão, 1938 [revisão do próprio autor no pós-guerra], Trad. Anna Hatherly, Vega 1999

Ora bem, ainda só comecei, mas não temo o risco de dizer que me espera um fim-de-semana apaixonante.



*nota da T.: sacaninha, o gajo, hã?...
**a nossa eterna mania de encontrar - e se for caso disso inventar - respostas a todo o custo...