IVG: afinal, o que é que está em causa?
Por falta de tempo postei sem explicações de maior a carta aberta que recebi por e-mail de uma ex-colega de faculdade e actual funcionária do PCP exigindo a legalização da Interrupção Voluntária da Gravidez por via parlamentar. Apenas o Z. se sentiu desafiado para o debate acerca do que pretende esta carta. Apenas e infelizmente, pois parece-me ser um debate bem pertinente neste ponto de bloqueio a que chegámos.
Temos discutido nos salmonetes, mas decidi novamente esclarecer aqui os meus pontos de vista. Primeiro porque o Haloscan tem as suas limitações. Segundo porque nos tempos de seca que correm, não se pode desperdiçar uma boa desova. E terceiro, porque o último comentário do Z. pega num ponto que me interessa, e muito, refutar.
Comecemos então pelo referendo. Penso que muitos estarão de acordo que todo este processo não passa de uma patética e criminosa forma de passar ao largo dos tempos, dos direitos e do inevitável. O bloqueio a que assistimos hoje, sem qualquer trabalho por parte da direita, que nada teve de boicotar para chegarmos onde estamos, nasce do monstruoso erro em que o governo de Guterres incorreu ao avançar para o referendo. Nasce do erro colossal do maior partido da “esquerda” ao aceitar que se referendasse uma matéria de saúde pública, direitos humanos e cidadania. Mas tem um renascimento na última campanha eleitoral, em que o PS de Sócrates não teve coragem de assumir a legalização da IVG por via parlamentar como ponto de honra no seu programa – levando atrás de si um Bloco cheio de boas intenções no que toca à calendarização de novo referendo e consequente desbloqueio desta situação quase burlesca [ainda assim levaram o meu voto, mas não me convencem de que esta foi a melhor estratégia]. Pesando embora as divergências no que toca à interpretação do último referendo, penso que até nessa leitura faltou coragem à esquerda: devia ter-se lutado pelo não acatamento do resultado, pela clarificação do seu carácter não-vinculativo. O resultado do referendo à legalização da IVG foi a renúncia à decisão por parte dos eleitores. Para mim, e como disse já nos salmonetes, isto significa que o poder está novamente nas mãos dos deputados. Daí ser tão importante a coragem do PS. Daí ser tão dramática a sua ausência.
Dizem-me que ignorar o referendo de má-memória seria um desvirtuamento da democracia. Pois eu respondo que a democracia não se esgota em procedimentos políticos. E com um copy-paste dos salmonetes explico-me já: para mim é muito claro que o actual estado de coisas desvirtua muito, mas muito mais, a democracia do que o não respeito por um referendo em que os eleitores não quiseram decidir. A democracia não é uma ditadura das maiorias, muito menos das minorias e ainda menos é uma mera linha de funcionamento institucional e formal. Ou melhor, não deveria ser, que a nossa, infelizmente, tem mostrado pouco mais que isso. Uma verdadeira democracia jamais deveria referendar uma questão como esta. Mas chegando a onde chegámos, e uma vez que o PS não teve coragem para fazer o que devia – referendar a legalização da IVG nas legislativas, como parte integrante do seu programa de governo -, resta-me[nos], continuar a lutar contra esta situação inominável e fétida. E contra o referendo. Se e quando ele for facto consumado, então lutarei pelo SIM.
Mas deixa o Z., a talhe de foice, no seu último salmonete: No entanto, faço-te notar que a razão de ser de toda a argumentação contra a IVG se baseia precisamente na delimitação do que é o teu corpo e do que passa a ser corpo alheio. Essa é a verdadeira natureza do debate sobre a IVG e não podes dar o assunto por encerrado porque, efectivamente, não está. As pessoas que acreditam que um feto é um ser humano estão a defender a mesmíssima coisa que tu defenderias quanto à pena de morte ou às penas de Talião.
Não, caro Z., não é essa a razão, mas antes a falácia. O que está em causa não é o que cada um pensa sobre o início do que se pode chamar vida humana. O que está em causa é o que cada um pensa sobre a mulher. Porque, e aí não há debate possível, a ciência não consegue especificar mais do que o famoso intervalo entre as 12 e as 24 semanas [e trata-se, de momento, da legalização até às dez semanas com excepções clínicas até às dezasseis]- e isso está bem patente no teu discurso quando falas nas "pessoas que acreditam que um feto é um ser humano". É aí, no acreditar, que reside o engulho. Porque todas as conclusões, moralizações ou efabulações são e devem ser de âmbito pessoal. Porque ninguém pode saber. E se ninguém pode saber, isto coloca-nos um dilema de muito clara resolução: o que é mais importante, os moralismos e a imposição de uma crença e de uma visão pessoal e/ou comunitária, ou o direito de uma cidadã a tomar decisões sobre o seu próprio útero e sobre os nove meses subsequentes da sua vida? Não é o direito do feto que está em causa. É o conceito de mulher. E é precisamente por isso que prefiro a expressão Interrupção Voluntária da Gravidez ou IVG ao vulgar Aborto. Porque o que está em causa não é o abortar de qualquer coisa. É o direito da mulher a decidir interromper algo que se passa dentro do seu corpo e tem repercussões irreversíveis sobre a sua vida. E é isto que é preciso frisar. É isto, diria mesmo, que é preciso desmascarar.
E porque isto anda mesmo tudo ligado, deixo eu também o meu talhe de foice: é urgente assinar a petição pelo Dia Internacional Contra a Homofobia [digo isto, mas espero que a ausência de comentários não releve da ausência de atenção ou intenção] e abraçar esta luta, porque, como se pode ler no final dessa bela página que se chama I’m no lady…
A homossexualidade é um produto de uma forma particular de imposição de papéis (ou padrões aceitáveis) de comportamento baseados no sexo; desta forma é uma categoria inautêntica (e não consoante a "realidade"). Numa sociedade em que os homens não oprimam as mulheres, e que à expressão sexual seja permitido expressar sentimentos, as categorias da homossexualidade e da heterossexualidade desaparecerão. Miriam Schneir,Feminism in Our Time: The Essential Writing, World War II to the Present
Porque os direitos humanos e cívicos têm razões que o referendo desconhece. E isto anda mesmo tudo ligado...