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segunda-feira, maio 23, 2005

A minha rua

Dobro a última esquina antes de chegar a casa e cruzo-me com um verdadeiro arquétipo romântico de sem-abrigo -cabeludo, bardudo, a cheirar mal, mas muito direito e seguro no caminhar, os olhos claros brilhantes e penetrantes sob a escuridão pilosa e sebosa do rosto-, como que um vencido da vida de cabeça erguida, com ar de quem sabe alguma coisa muito importante que eu não sei. A rafeira preta que vive na minha rua desde que os donos, dois prédios abaixo de mim, deixaram de lhe abrir a porta de casa, tem, descobri hoje, um problema com alguns tipos de pessoa. Perseguia o anacoreta urbano, ladrando furiosamente, conseguindo mesmo pô-lo a correr -divertido, e sempre sem perder a compostura- e a mim no meio da rua a gozar a cena e o enquadramento privilegiado. Logra expulsá-lo do seu território quando um velhote gorducho, de ar triste e também pouco limpo dobra a esquina do convento, imediatamente acima de onde eu estou, e logo a fiel guardiã acomete sobre ele no seu ladrar grave e ressoante. Mais um que já se pirou, este, coitado, não conseguia correr para se livrar daquela voz tonitroante do canino e obstinado juiz da sua higiene pessoal, lá teve de gramar com a farrusquita a ladrar até ao fim da rua. Estava mesmo chateada, ela, quase nem parou para receber as festas e a conversa a que sempre tem direito quando comigo se cruza. Mas compreendo-a. Se eu tivesse, mesmo vivendo na rua, uma coleira ao pescoço e alguém tivesse tido a triste ideia de a ela atar três ou quatro fitas do Senhor do Bonfim -duas delas de um branco resplandescente-, também não andaria no melhor dos meus humores.

-'Tadita da bicha, agora puseram-lhe essas porcarias ao pescoço, parece uma noiva.

Descendo vagarosamente a rua vem uma velhota baixinha, de cabelos brancos e rosto luminoso. É a minha vizinha do 25. Já ia a entrar no prédio, mas respondo-lhe e fico à porta esperando que ela chegue à minha beira. E vai falando, não há direito abandonarem assim um bicho, ela tinha um irmão, mas como tinha o pêlo todo enroladinho alguém já o levou, agora esta... Pois, respondo eu, esta é mais "normal", não é? Eu até a levava, mas dois gatos e uma vida muito fora de casa, era impossível. Ela, pois, eu também não a posso ter em casa, senão... Quem pode, não quer saber, quem quer não pode... E depois de mais alguma conversa de [genuinamente] boa-vizinhança, apresento-me e estendo-lhe a mão e recebo, juntamente com um olhar muito vivo e doce, uma daquelas frases pequeninas e aparentemente banais, como a nossa rafeira:-Gostei muito de falar com @ menin@. E naquele amoroso reconhecimento senti bater todas as portas que se fecharam já na rua antes que a minha vizinha Mabília de Jesus, de cabelos brancos e pernas trôpegas, conseguisse chegar para terminar a conversa que tentara entabular.