A fina flor do entulho
Dia quatro de exames antes do final e mais importante. Este já não conta, vou só ajudar os colegas de grupo que precisam da nota. Nem sabe o professor da cadeira a sorte que teve por isso. Porquê? Lá chegaremos.
Ora o exame de hoje era da classe de Música Antiga. Aberturas e cenas da Fairy Queen de Henry Purcell, alguns dos momentos mais maravilhosos da música ocidental. Que melhor ambiente que o do Salão dos Embaixadores do Palácio Nacional da Ajuda? Bom, assim de repente... todos! É estranho e não é. Afinal estamos em Portugal. E o verdadeiro espelho do país não são os arraiais ao som de Quim Barreiros, mas estas elites enfeitadas a ouro que bocejam ao som de um génio e não conseguem focar o olhar, ao menos para fazer de conta que estão a ouvir qualquer coisa. Confessem, vá, um bom bailarico é que vos alegrava a noite, não era? De toda a experiência que tenho, a única imagem que bate as desta noite é a do D.Duarte Pio de Bragança Giroflé-giroflá a tirar discretamente uns burriezitos do nariz ao som do Messias na primeira fila do transepto da Sé de Angra do Heroísmo. Que é que pensam, isto da música erudita é um grande observatório sociológico, não duvidem!
A viagem pela elite portuguesa começou logo ao meio-dia com o ensaio de colocação. Diz-nos o senhor que aparentemente representa a directora do museu [um acessor de banco corrido que estava interessadíssimo em mostrar-nos como os focos de luz iam iluminar as plantas por detrás dos músicos], que não são admitidos outros convidados que não os do Palácio, "os mecenas que nele injectam milhões, e as respectivas famílias". Pronto, tocou a sineta na cabecinha d@ Manel, até então deliciad@ com o salão e boquiabert@ admirando o imponente lustre que o domina. Não são admitidos convidados? Mas isto é um exame do Politécnico, por lei tem de ser público. Aliás, foi por isso que há três anos uma dúzia de parolos puseram o seu exame de Interpretação Cénica em risco quando souberam que iam ser cobradas entradas -ninguém entrava no palco se a entrada não fosse livre. E a entrada foi livre. Mas este exame não era meu e havia colegas dependentes da nota que não pareciam interessados em levantar muitas ondas. E o bom contestatário é aquele que sabe quando é hora de não contestar... muito. Sou eu e o Manel Alegre, a mim ninguém me cala. Só que ultimamente tenho aprendido a misturar o melhor possível a franqueza com o cinismo social. E a verdade saída de uma boca diplomaticamente sorridente é, tenho aprendido, ainda mais assustadora. O dito senhor achou por bem, então, utilizar uma das tácticas mais velhas do mundo -afinal, ele não queria saber do exame para nada, mas os mecenas tinham de ouvir os macaquinhos amestrados da escola de música e ele não queria correr riscos. Abordou-me cordialmente, pediu para falar particularmente e off the record [só faltou dizer que se via logo que eu era muito inteligente e de confiança] e contou-me, para ilustrar as façanhas das orquestras escolares, uma patranha sobre como se comportaram os alunos de uma outra escola oficial e os seus convidados, uma patranha envolvendo comida e a tão conhecida alarvidade das classes mais rascas [esta acrescentei eu]. Descansei-o: -Meu caro, quando digo que tem de ser público falo do concerto, não do buffet. Bem podia acrescentar que no fim até podia mandar a malta para a cozinha, comer os restos da ceia dos senhores, que a gente não se importava. Mas contive-me. Ando a perder qualidades, é o que é.
Mas a comida parece ser uma preocupação premente. Logo a seguir quisemos confirmar que tínhamos direito a almoçar na cafetaria do IPPAR. Sim, tínhamos, mas era uma excepção, não costumava ser assim e a senhora directora estava com os cabelos em pé com essa história [sic], porque eles faziam o favor de nos pôr à disposição um espaço para mostrarmos o nosso trabalho, era justo que viéssemos com os nossos próprios meios. Digo eu, talvez umas iscas numa marmita de latão, não? Aí podia ter respondido muita coisa. Que era significativo que aquela mentalidade e aquela conversa viesse das mais altas instâncias do palácio que alberga o nosso Ministério da Cultura. Que de facto, com um pensamento tal nas elites, não admira que sejamos sempre o aluno virado para o canto com orelhas de burro. Que é esta a consideração que os donos do dinheiro da Cultura têm por aqueles que a vivem e fazem nascer e renascer todos os dias. Mas o velho Manel deu sinal de vida: -Então a senhora directora podia era pegar numa guitarrinha e ir ela ali para a frente animar os mecenas, que tal? Um silêncio aparvalhado do outro lado foi o sinal de que aquela conversa já não ia a mais lado nenhum. E eu também tinha mais que fazer do que aturar um sabujo armado ao aristocrata.
À noite, antes do exame, a senhora directora apareceu, mal vestida como o raio -como é apanágio destas senhoras quase todas, muito ouro, muito brocado, muita cor, a saia travada nos corpos inchados, enfim, o mais absoluto despudor estético- dizendo-nos para entrar. De repente senti-me fardad@ e de guardanapo branco no antebraço. A douta senhora entrou pela ala, de braço no ar, estalando os dedos, qual governanta, mandando-nos entrar para tocar sem sequer perguntar se estávamos prontos. Quando eu tinha a certeza de que ela ia gritar "Garçon!", veio a hesitação na voz e finalmente a palavra certa, raios estava debaixo da língua, "Ó Maestro, Maestro!", o braço alçado, os dedos a estalar e os meus pêlos dos braços a levantarem-se, um por um. Melhor que esta só a dos Jerónimos, que decidiu dar uma entrevista para a SIC no meio de uma cantata de Webern e teve de ser mandada calar pelo coro e pelo público.
E depois o público. Meus deuses. A primeira fila era assustadora. Dos homens nem preciso de falar, cinzentos e balofos, todos iguais, todos aparentemente mortos. A mulher mais bem-vestida era a Maria Barroso -que ao sentar-se espetou com a longa écharpe nas trombas de uma professora do júri [trombas é como quem diz, que bem gira é ela] que estava sentada atrás dela-, tudo o resto estava ao nível da senhora directora, e abaixo dele. Assim sentadas, de saias arregaçadas, ainda eram mais repugnantes à vista. Os olhos, em geral, vagueavam pela sala, talvez em busca de um relógio, talvez em busca de nada que não a passagem rápida do tempo. Os bocejos também deram um ar da sua graça. De tosses esteve-se menos mal. Não havia os ácaros da Gulbenkian e está calor. Viva, um ponto a favor. A minha tia de estimação, de há dez anos conhecida de andanças corais amadoras, mulher sem problemas porque bem empregada na sólida firma Dias & Dias à Boa Vida, S.A., andava numa excitação, com a sua maquinazita fotográfica. Era uma perseguição no coro, pelo visto não mudou. Já tem histórias para contar no próximo ensaio, sobre as andanças de mais um@ filh@ pródig@ no seu palácio. Bom, esta pelo menos ainda está com umas pernas jeitosas, bem que podia ter-se sentado à frente, amenizava um bocadinho aquele friso flácido. É verdade, cá para mim aquele puto fardado de rosto triste que não tirou os olhos da orquestra vai começar a tocar contrabaixo. É um palpite...
Intervalo. E depois do intervalo os músicos em cena, aguardando o regresso do público por bem mais que cinco minutos. A falta de chá desta gente nem merece comentários. E o momento mais difícil da noite. Antes da Chaconne final, as deslumbrantes canções de Night, Mistery, Secrecy e, finalmente, Sleep: -Hush. No more. Be silent. Be silent all. Sweet repose has clos'd her eyes, soft as feather'd snow did fall. Softly, softly, steal from hence. No noise. Pausa. No noise, Pausa. disturb her sleeping sense. No noise. Pausa. No noise, Aaaaatchiiiiim!!! disturb her sleeping sense. A gargalhada a irromper, não Manel, tu és profissional, aguenta-te! Impossível olhar para a Cristina B.C., topou-me à légua, e na segunda fila, atrás da Maria Barroso, pode dar-se ao luxo de rir em silêncio mas com a cara toda. Não se faz. Foi um sofrimento!
No fim a senhora directora ofereceu-nos manjericos. Eram para os solistas dizia, e nós em coro, "solistas somos todos, isto é um grupo de câmara!". E no fim de tudo troca os nomes e agradece à vândala orquestra da qual o acessor me tinha contado as supostas alarvidades. Calculem o que tive de me conter para não lhe dizer: -Está a confundir-nos, nós temos mochilas mas não roubámos comida nenhuma, e nem sequer trouxémos convidados, ok?! Já calcularam? Calcularam mal. Foi muito mais que isso. Mas consegui. Estou a ficar adult@, será? E vinte e oito anos não será cedo de mais para tal desventura acontecer? Bolas!...
Em resumo, um dia bem passado no meio da fina flor do entulho. São estas as nossas elites. Francamente, ainda acham que a culpa é dos funcionários públicos? E quando é que se reforma esta gente? E os sucedâneos? E os sucedâneos dos sucedâneos? Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaarrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrggggghhhhhhhhhhh!!!!