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quinta-feira, junho 16, 2005

Morreu um homem

Muito ódio se destilou. Mas todo ele foi em vão. Nós, os muitos muitos mil que nos despedimos do Álvaro [ao contrário do que diz o Tasco Pulido Valente, digo "o Álvaro", não com reverência, mas com o carinho com que poderia falar de um dos meus -bons- amigos], nós sabemos porque enchemos Avenida e Chile e Paiva Couceiro.

A demonização de Álvaro Cunhal é algo que resiste quase tanto como ele resistiu à prisão, à tortura, ao isolamento, ao cansaço, à doença, à falta de alimento e de perspectivas, à falta de luz. Não me surpreende, de facto. Mas revolta-me e entristece-me. Também se compreende e não pensem que não me dou o devido desconto [ou o desconto possível nestas coisas dos afectos]. Eu cresci com o Álvaro. Sendo filha de comunistas nascida nos estertores do PREC, naturalmente toda a mística do Partido e o carisma do seu líder me acompanharam desde que me lembro de pensar. A sua presença física também. A sua afabilidade, a sua inteligência, o seu sentido de humor, a sua disponibilidade e capacidade de ouvir. Sinto-me francamente privilegiada por isso. Por pouco tempo e dividido que tenha sido, guardo das conversas que tive com ele -sobretudo no fim da adolescência, a última terá sido há pouco mais de dez anos- memórias exactas de palavras e expressões, de entendimento, de conforto e abertura. Em nenhuma situação me intimidou, em nenhuma situação me fez sentir inferior ou indiferente. E mesmo quando me comecei a afastar do PCP -embora afectivamente me assuma muito ligada, sobretudo a algumas pessoas específicas e à presença ainda viva do sonho e do ideal-, mesmo quando continuava a votar CDU com reservas e preocupações e finalmente quando a caneta acabou por cruzar outro quadrado, nunca a imagem que guardo do Álvaro se esfumou ou se deixou engolir pela diabolização ora de menorização disfarçada que sempre varreu a sociedade não-comunista portuguesa -com numerosas e honrosas excepções, felizmente.

Mas não foi por falta de dúvidas ou divergências. E talvez por isso me seja hoje tão grato afirmar a amizade que lhe guardo ainda, a admiração que guardarei sempre.

Ontem a SIC perdeu a oportunidade de prestar um importantíssimo serviço público. Um excelente documentário sobre a vida e a personalidade do Álvaro passou cerca das duas da manhã. Bem estruturado, completo, isento, esclareceu muitas facetas e muitos percursos. Apresentado à hora que merece, em vez de uma qualquer novela, despertaria muita gente para a ilusão que é analisar a história do PCP com base nas premissas progressistas do mundo actual. O mundo não era o mesmo [ou talvez fosse, mas o jogo tinha regras bem diferentes]. O PCP, como partido clandestino, perseguido, consecutivamente despedaçado e reorganizado, era absolutamente dependente da ajuda do Bloco Socialista e sobretudo da URSS, naturalmente. Álvaro era um homem que abraçou uma causa, um ideal e uma utopia que -nas suas próprias palavras- parecia transformar-se em projecto. Entre as abjecções pseudo-democráticas do liberalismo ocidental e um projecto aparentemente em curso de construção de uma sociedade mais justa com base no ideário por si mesmo partilhado, a escolha parece-me bastante compreensível. Tudo o resto daí advém e é história. Demasiadas vezes truncada, mas história - e psicologia. Neste mesmo documentário, um militante comunista conta como interpelou Cunhal quanto à mudança de posição na inicial condenação pelo PCP da invasão da Checoslováquia. A resposta é clara, sem a ajuda do PCUS o Partido tinha poucas ou nenhumas hipóteses de sobreviver à perseguição fascista e à dureza da clandestinidade e do exílio. E I rest my case. Erros posteriores, houve-os, com certeza, o maior dos quais, na minha perspectiva, o inicial apoio aos golpistas que derrubaram Gorbachov -e subsequentemente a URSS. Este é para mim um dos grandes "ses" desta história: e se Gorbachov não tivesse caído? Tenho por quase certo que este "se" ecoou também muitas vezes na mente do Álvaro. Pode ser que me engane, mas algo me diz que não.

A discussão acerca da validade do projecto comunista está, para mim, num plano muito mais filosófico que político. A política tornou-se na minha cabeça em algo muito mais quotidiano, a utopia cheira-me hoje, por vezes, ao adiar do possível para morrer pelo impossível. A liberdade, valor supremo que me foi legado pelos comunistas como o meu pai [não, não é nenhum combatente famoso, mas foi cumprindo a sua parte e é, na sua inteligência e idealismo, o meu comunista doméstico, donde, de referência], pelo Álvaro, o Dias Lourenço [cuja fuga nocturna e solitária do segredo em Peniche é, para mim, a mais impressionante aventura da epopeia comunista portuguesa], a Catarina Eufémia, o Luís Sá, o João Amaral, o Octávio Teixeira, o Pires Jorge, a Rosa Rabiais, o Edgar Correia, o Manuel Gusmão, essa liberdade que com eles aprendi a valorizar e a defender, é o ponto que me dita que a obsessão da utopia pode ser suicidária. Mas não esqueço que foi deles que recebi o legado. E que ao seu lado a luta faz mais sentido.

Não queria deixar também de falar das questões que hoje mais me movem e me parecem mais prementes. Muito se fala do papel das mulheres no imaginário comunista, mais particularmente no imaginário cunhalista e na sua obra literária. Novamente, vemos tudo pelas nossas lentes sem sequer perceber que tiramos os óculos quando olhamos para a nossa própria realidade. Em "Até amanhã, camaradas", guia de sobrevivência na clandestinidade, as mulheres são menorizadas, diz-se, são as amigas, as cumpridoras das tarefas domésticas, as responsáveis pela segurança das casas clandestinas e pelos trabalhos de dactilografia, por vezes também o célebre "repouso do guerreiro". Tenho uma palavra e um prefixo para isso: "Neo-Realismo". Tal como as mulheres do Eça não eram doutoras, senão putas, criadas, dondocas, ocasionalmente inteligentes e/ou intelectuais [doutros estratos sociais se falava, também], as mulheres de Cunhal são o que eram. Rurais. Simples. Remetidas naturalmente ao seu papel aparentemente menor a olhos progressistas do século XXI por uma sociedade fechadíssima que nem ponderava sequer olhar para elas de outro modo. Nem elas mesmas sabiam olhar-se de outro modo. Além de que as condições da clandestinidade levavam a que naturalmente naquele tempo os trabalhos mais nómadas, as viagens mais duras, as epopeias a cavalo numa bicicleta fossem executadas por homens. Mas e nas fábricas cheias de trabalhadoras, não me digam que não leram da importância das mulheres na mobilização e na organização? Vá, procurem melhor... E leia-se as cenas da prisão e da tortura, da resistência e do silêncio e procure-se a menorização da mulher numa linha que seja, não se achará. Atente-se bem nas principais personagens femininas e rapidamente se percepcionará as diferenças bem marcadas nas personagens de Rosa e Maria, duas dessas "amigas", próximas nas tarefas mas tão diferentes nas origens, nas aspirações, nos relacionamentos e na afectividade, e no outro extremo a mulher do advogado, contacto urbano e, passe o anacronismo, do cosmopolitanismo possível, verdadeira força resistente na casa de um homem que quer ser bom mas a quem a coragem falta bastas vezes. E depois, durante o século XX português nenhum outro partido político se bateu e conquistou tanto pela igualdade de direitos entre homens e mulheres e entre "raças". É agradecer e andar, meus amigos, e o resto é conversa.

Quando penso no Álvaro, nisto tudo e em tanto mais, quando oiço ou leio os comentários desdenhosos, sopra-se-me sempre ao ouvido um momento de América, de Franz Kafka, em que se lê que é impossível um homem defender-se quando não há um mínimo de boa-vontade da parte de quem julga. O que vale é que o Álvaro não precisa de defender-se. Muito menos diante de tais juízes.

Morreu um homem. Com um percurso romanesco e acidentado, com uma vida entregue à luta e com uma admirável felicidade com essa escolha. Um homem franco e decente, de sorriso aberto e inteligência larga. Com muito sentido de humor. Com erros e acertos, avanços e recuos. De uma generosidade rara. De um humanismo verdadeiro. Como num abraço disse ontem ao meu amigo Bruno, triste como nunca o vi, ainda paradoxalmente perplexo -como todos nós- face àquilo que todos esperávamos: -Ficamos cá nós. E como me respondeu ele, nós e os que a nós se juntarem. Venham de que norte vierem, de que canto ou gruta ou palácio vierem, desde que por bem e dispostos a lutar para que a cada dia a liberdade, a igualdade, a fraternidade e a justiça possível possam dar-nos mais e mais espaço para abrirmos as asas. Até amanhã, camaradas.

P.S.
Não resisto a partilhar convosco a informação que recebi ontem, de fonte mais que segura, a última coisa que este homem conseguiu fazer para me deixar estupefacta. Na véspera da sua morte, Álvaro Cunhal ditou, claro e consciente, a carta de condolências para a família de Vasco Gonçalves. A própria dignidade, a vida interior e a generosidade, levou-as até ao fim.