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segunda-feira, julho 04, 2005

A dois dias de terminar a licenciatura e com 47 páginas de Notas de Programa Académicas acabadas de rever, só me ocorre postar isto.



Os gatos são animais domésticos.
É curioso como conseguem ser animais de dentro de casa
e conservar o jeito selvagem de quem é dono de si,
e, portanto, do Mundo.

Os gatos não são animais libertinos.
Não precisam de ser, porque, por tradição genética,
nunca estiveram acorrentados a coisa nenhuma.
Só é libertino quem tem amarras e precisa urgentemente
de se libertar.

Os gatos são animais vadios.
Nascem sem um rumo. Com os gatos é diferente dos
outros animais que se pegam aos donos ou aos ninhos:
são as casas onde habitam que necessitam deles e lhes
pedem a permanência. Eles ficam: não por pena nem por
consideração. Mas porque não têm rumo fixo e por isso
são animais livres - pura e simplesmente podem ficar.

A Joana gosta de gatos.
Sentada, adquiriu o mesmo ar felino. Ouço-a brava,
no centro da sala, aninhada numa manta, a ronronar
sobre as suas predilecções mamíferas. É preciso ter
cuidado com os afectos, porque, no caso dos amores
platónicos, se podem apanhar os trejeitos da cousa
amada. No caso dos outros amores não é preciso ter
tanto cuidado assim, porque, de qualquer maneira,
não duram muito tempo.

Em minha casa há um gato preto.
Sempre houve, porque se achava que os gatos pretos
afastavam o azar. Eu cá acho que não, mas, sabe-se lá, se
calhar, se não tivesse havido gatos pretos, o azar era ainda
maior. É uma coisa semelhante a quando me dizem que
as artes são boas para o equilíbrio emocional, para
a felicidade, etc, etc. Eu cá acho que não, mas, sabe-se lá
se sem as artes não seria ainda pior.

As crianças arregaçam os gatos.
Pegam-lhes pelo ventre e da cinta para cima ficam
cobertas de penugem fofa de fera. Nenhum gato gosta
de ser agarrado como se fosse um objecto de posse.
No entanto, reconhecem o congénere afecto das crianças:
sem posse, por acaso. Por isso são pacientes e deixam-se
prender. Os amores do acaso vêm do magma do instinto
e, de facto, não prendem.

Eu acho que quando os gatos morrem não deviam
ser enterrados.
Quem vive com tanta altivez e desprendimento merece,
no mínimo, ser embalsamado, ou, então, ser alternativa
a um casaco de vison. mas Deus não dorme e há-de
compensar os erros da burocracia e coveirice humana,
sempre tão apressada em apagar quaisquer rastos
de integridade.

Uma vez, a Mãe de uma minha amiga esteve internada
numa clínica para dormir até acordar curada. O que lhe
valeu foi uma gata láctea que todos os dias vinha roçar-se
no corpo de que estava já separada. A Mãe reaprendeu
a espreguiçar-se e a ressentir-se, e acabou por se salvar da
insónia e da cura a que quiseram forçá-la. Os doutores
deviam, pois, reaprender a solidariedade dos instintos,
e, se possível, andar de gatas. Agora, a Mãe da da minha
amiga salva todos os gatos. Já lhe aconteceu desesperar
uma semana à procura do Gato Vivaldi, e continuar grata,
mesmo depois de arranhada por um siamês enraivecido.
Mas entre ela e os gatos ficou, para sempre,
um entendimento superior e um trato de lealdade.
Como se sabe, mas finge-se não se saber, para essas
clínicas só vai gente de coração grande.

Os gatos gostam de caçar pardais.
Fazem quilómetros de rodopios, enfeitiçados pelo feitiço
que se criaram. Quando as garras cravam o último
dos pios, morre o cintilante encantamento e têm
de ambicionar novas penas, novos feitiços. É a única
coisa em que os humanos se lhes assemelham.
Todas as demais virtudes são da exclusiva pertença
do mundo dos felinos.

(...)

O gato é um animal de estimação.
A perspectiva dos homens em relação aos gatos
é a perspectiva dos homens em relação a tudo.
Confirma-se: os gatos têm utilidade. Se nos dedicássemos
a estudar electroencefalogatos iríamos perceber que na
metafísica felina não há lugar para considerações sobre
a necessidade e a utilidade das coisas. Por isso, os gatos
são animais independentes e desinteressados.
Se lhes perguntássemos qual a utilidade dos humanos,
eles iriam responder que sim. Ou que não.

Os gatos passeiam-se pelos telhados.
Eu tenho inveja dos gatos porque também gostava
de me passear por sítios proibidos. Mas eles têm
a propriedade de arquear o corpo e ficar levezinhos,
pois o céu suspende-lhes o peso. O meu Pai diz-me que,
se eu quiser, quando for grande, posso ser gato, mas
que, por enquanto, tenho de continuar a vir à escola.

Em suma, os gatos são animais quadrúpedes.

Elvira Santiago, in Intermezzo