Um cadáver esquisito
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Não pude dizer-vos nada, ontem, não o permitiu a ressaca da despedida de uma companhia que ao desaparecer deixa Portugal ainda mais atrasado e mesquinho do que já é. Foi intensíssimo, o fim de tarde de domingo passado. As palmas, as flores, as lágrimas e aqueles corpos, oferecendo-nos tanto, partilhando tanto.
Não sou capaz de descrever-vos o espectáculo, de como a emoção percorreu o público quando se abriu o foco de luz e o coro dos bailarinos deu início à Cantata, uma das peças mais maravilhosas que já vi dançar, a última a que assisti no palco daquele incomparável Grande Auditório que agora me parece subitamente tão vasto, inútil e vazio. Os minutos intermináveis de aplauso, ainda antes de um único corpo pisar o palco. Os bailarinos reformados e o público emocionado arrastados para o palco para dançar também. A procissão até à marina e o círculo de rua que se formou em redor da companhia e dos Danças Ocultas para aproveitar cada gota de uma despedida que todos queríamos que não acabasse, um relógio que se atrase, uma folha de calendário que não se passe, um país civilizado e adulto que defenda os seus mais valiosos tesouros, qualquer coisa esperávamos nós naquele ocaso à beira do rio. Mas o sol pôs-se. E entre flores e aplausos, abraços, lágrimas e risos, o Ballet Gulbenkian morreu.
Será que o dinheiro vai ser distribuído por outros projectos da dança portuguesa? Talvez. É bom que esses projectos sejam apoiados? Sem dúvida. Mas nada poderá substituir nos próximos - vários - anos, o Ballet Gulbenkian. Porque tinha condições de trabalho incomparáveis, e por isso escalou tantos patamares de qualidade. Porque era uma laboratório de liberdade, um escola sem par para bailarinos e coreógrafos. Porque era uma companhia com uma actividade regular, presente, sempre com público, que permitia uma vivência quase quotidiana da dança, uma relação de familiaridade e afectividade artística que não se repetirá por muito tempo. Tudo isto faz com que a extinção do Ballet Gulbenkian seja um crime contra todos nós, contra a nossa vivência artística, contra os nossos direitos culturais. E é triste e preocupante ouvir argumentos de que não faz mal desde que o dinheiro vá para as publicações científicas ou os laboratórios de investigação - é tão absurdo como seria ouvir os bailarinos ou os músicos regozijarem-se com o fim dos laboratórios de Oeiras desde que o dinheiro fosse para a cultura -, sempre a mesma palavra ressoa na minha cabeça, mesquinhez, mesquinhez, mesquinhez. Ou de outros profissionais da dança - alguns formados ou desenvolvidos no BG - que não vêem a gravidade deste assassínio cultural desde que haja outros apoios à dança contemporânea - como se fosse possível e idêntico substituir uma companhia brilhante e com a solidez de quarenta anos de trabalho e de público por várias companhias errantes, recentes, de públicos irregulares e com dificuldades de divulgação. Como se não fosse óbvio que a própria existência do BG criava os profissionais e os públicos que alimentavam essas mesmas companhias. Como se o BG fosse um paquiderme inútil e não um vórtice de arte e descoberta. Mesquinhez, mesquinhez, mesquinhez.
Pequeno consolo, o deputado Miguel Tiago, do PCP, já enviou ao Ministério da Cultura um requerimento referente a este assunto [obrigad@ lux]. Talvez seja um sinal de que ainda não é tempo de desistir. Mas esta indignidade desrespeitosa e irresponsável já foi feita. Esta despedida está completa e sofrida. E nunca a Fundação Calouste Gulbenkian voltará a ser a mesma, para milhares de portugueses e estrangeiros que nela viam uma casa sem paredes da arte em Portugal e fora dele. Depois do ACARTE, das Jornadas de Música Antiga e das Jornadas de Música Contemporânea, a destruição continua. Sem pestanejar. Perdigão perdeu a pena, não há mal que não nos venha.
O espírito está triste, mas cheio desde a noite de domingo [que o jantareco no Peter's com a Azul e a Laranja e os copitos de Jameson também ajudaram a atestar a alma]. Nunca esquecerei o Ballet Gulbenkian e serei eternamente grata àqueles 29 corpos por este abraço prolongado com que nos disseram adeus.
Já alguém escreveu que do cadáver do ser que morre livre pode sair acentuado mau-cheiro, mas nunca sairá um escravo. Pudera, com tanto bailarico estava tudo suado. E livre.