And now for something completely different...
Heath Ledge e Matt Damon, Os irmãos Grimm, profissão: vigaristas com especialização em lendas e crenças populares
Diferente, mesmo, já que, para começar, este é o filme mais linear que alguma vez vi sair da mente alucinada - ou alucinogénea - de Terry Gilliam. Mas apesar dessa linearidade tão alegremente dispensada por Gilliam no resto da sua onírica filmografia, este filme faz jus à caminhada desperta que o seu autor tem feito pela bruma dos misteriosos bosques do cinema. O argumento de Ehren Kruger é brilhante, doseando os vários elementos dos contos maravilhosos que todos conhecemos em diversas versões e materializações, brincando com as referências, trocando contextos e funções, para no fim da mistela chegar a uma espantosa e fantasiosa verosimilhança. E todo o imaginário de Gilliam, desde as animações pythonescas até aos desvarios de Brasil ou Twelve Monkeys, serve e é servido brilhantemente por esta história. Goza toda a sua grandiosidade imagética - com um leque de efeitos especiais comme il faut, ou seja, se não se quiser nem se dá por eles [sobretudo se, como eu, se passar várias cenas infantilmente agarrad@ à cadeira, com medo, felicidade e fascínio] - e encontra chão mais que propício à sua ironia. Com o gozo de uma criança, faz troça da superstição materialista [como lhe chama Denis de Rougemont] personificada no invasor francês - mais precisamente no brilhante Jonathan Pryce, num impecável snob racionalista francês que quer, pode e manda. Não escapa, do mundo real, o obscurantismo das mentes aldeãs por oposição com a ânsia de fantasia de Jacob Grimm/Heath Ledger; o garanhão italiano [ó Boss, esta até pareceu de propósito], especialista em técnicas de tortura que fariam um ouriço confessar que é um coelho, rápido no gritar para disfarçar a lentidão no pensar, enfim, um verdadeiro arquétipo; o poder arrogante - e as caves escuras de tortura e brutalidade que sustentam esse asseio iluminado que vem estabelecer a ordem entre os "bárbaros", um pouco como os generosos democratizadores têm feito no Iraque [aquele dependurado sob tortura que em plano de fundo vai pontuando o discurso do general que pretensamente representa a civilização é deliciosamente pythonesco]; e até temos direito a um cheirinho edipiano, na já esperada revelação da identidade do intrigante homem-lobo. Para além do saborosíssimo jogo que é topar todas as referências que surgem nos momentos mais insólitos - a minha vida nunca mais será a mesma, agora que sei que não foi o Capuchinho Vermelho que disse, Tens uma boca tão grande! e que o bicho em questão nem era um lobo, mas um cavalo amaldiçoado -, piscando-nos o olhos desfilam Hänsel e Gretel, a Gata Borralheira, a Bela Adormecida, o Gingerbread Man, a maçã da Branca de Neve, Rapunzel e a malvada rainha com seu espelho. Tudo em ambientes fascinantes e fantasmagóricos, em que à mais pura emoção do cinema e da fantasia fazem cócegas a ironia, o humor e a comprometida e absurda leveza de Terry Gilliam.
Com esta rainha, quem é que quer saber da Branca de Neve para alguma coisa?
Que mais acrescentar? Só, muito obrigad@, querido Pedro, por mais este convite.