Quem tem um pai
Dia santo para os pombos da Ribeira. Domingo de sol significa tarde de turistas e o cais carregado de crianças e sacos de milho. Até o Douro se junta à festa, revolvendo espuma e garrafas de plástico ao fundo das rampas de pedra. O olho digital ficou em casa, em má hora, pois não há melhor ambiente para o paparazzo passar desapercebido, com gente de todos os tamanhos, feitios e pronúncias, de câmara, carteira ou saco de milho em punho. Cada click tem de ser feito, então, pela retina, para se esfumar da realidade meio segundo depois. O puto que salta do pino de amarração de cada vez que se se sente capaz de apanhar um pombo, para regressar ao ponto de observação após cada caçada frustrada. Um puto ainda mais puto a quem o pai dá uns estúpidos e brutos safanões para o conduzir ao ponto que considera privilegiado para atirar milho às pitorescas e piolhosas aves. "Grande besta", murmuro entredentes, os auscultadores nos ouvidos impedem-me de perceber se falei demasiado alto. Mas infelizmente ele não me ouviu. De sobrancelhas e lábios franzidos, a criança atira o milho com violência, às vezes contra os adultos que o acompanham, e só suaviza o gesto face ao meu riso ao ser bombardead@ também. Ri-se para mim, bonito e pueril. Com os olhos castanhos e grandes cheios daquela doçura da perplexidade infantil face ao inesperado olhar cúmplice e afectuoso de um adulto.
Mas se um destes dias, em vez de milho, começar a atirar palavras duras ou socos, todos ficarão surpresos, interrogando-se melancólicos sobre as razões de tanta agressividade.