Do lado do sol
A Rua das Flores foi, há um ano e durante três saboreados meses, eixo do meu quotidiano entre a Ribeira e Cedofeita. Também eu a percorria do lado do sol, com ou sem música nos ouvidos, com algumas escalas ora na pequena Igreja da Misericórdia, ora frente ao palacete dos Maias, ou apenas com o sol na cara e o ar do rio insinuando-se, o cantar do Porto misturando-se com o berrar das gaivotas.
Nunca me cruzei com essa sombra de bloco na mão. Mas, coincidentemente, tenho dado por mim a pensar várias vezes na aparente morte em vida que algumas demências aparentam ser. E ao observar um dos muitos exemplos que povoam as ruas do Porto, senti uma súbita e não totalmente nova admiração misturada com compaixão. Parece um lugar escuro, a negação, um lugar de morte. Mas é por vezes a escolha de uma consciência que recusa viver com o buraco negro deixado por uma perda insuportável, que recusa por essa perda ser transformada, desencantada, amargurada. Seca. Talvez para alguns espíritos, e face a algumas perdas, a loucura não seja um preço demasiado alto.