Terça-feira fui ao Porto
-O post da Vermelha picou-me...-
Gosto do Porto, sinto-me lá bem e mal, como em Lisboa, a minha terra. Sempre me senti tripeiro na Ribeira, em Serralves, na baiiiixa, nas ruas e nos cafés... desde que comecei a conhecer o Porto pelos meus pés. Desde sempre.
Nas margens
Deste rio atormentado
É que está dependurado
O nome do meu país
Mistura
Entre a fuga e a procura
Entre o medo e a loucura
Que estão na minha raiz
Gosto de sair na Campanhã e correr para o comboio estacionado na linha número seis com destino a São Bento que já devia ter saído há cinco minutos não fossem a partida de um estar marcada para a exacta hora da chegada do outro e a demora dos passageiros a transferir pesos, bagagens, espíritos e personalidades. O comboio - que já não é feito daqueles vagões sujos, metálicos e castiços que mais pareciam destinados ao transporte de animais ou à filmagem de cenas cinematográficas em que os fugitivos ou viandantes saltam clandestinamente para os vagões em andamento - espera. Eu continuo a correr de um para outro, não sei bem porquê. No meu espírito de lisboeta devo pensar, se partir atrasado não há-de ser por minha causa...
Meu Porto
Muito mais vivo que morto
Tu recusas o conforto
De quem está morto de vez
Por isso
Eu te mando este recado
Porque vivo atormentado
Como o rio que te fez
Saio naquela estação que me habituei a chamar de "a mais bonita do mundo" e sinto que todos me topam, este é mouro, está escrito em alguns olhos, e eu sorrio à ideia e eles sorriem-me de volta sem saber porquê. E está sempre sol quando chego ao Porto. E calmamente subo para a Praça da Batalha de onde em Novembro roubei uma cadeira abandonada - não, não foi daquelas que lá estão pregadas ao chão, sou rijo mas não tanto, não sou do Porto - e olho para o São João, aquela linda fachada onde sei que terei quase inevitavelmente um cartaz bonito para me receber, como que um grande quadro na parede daquela sala de toda a gente.
Daqui houve nome Portugal
Aqui está tudo bem e tudo mal
Meu Porto, és o carinho que me tenho
És a ponte de onde venho
Entre o mar e o quintal
E olho para tudo novamente como na primeira vez, como em cada uma das primeiras vezes. O Porto é um mistério solarento e escuro. O Porto ser-me-á sempre querido e estranho. E sorrio. Vou trabalhar aqui outra vez. Daqui a um mês vou viver aqui um bocadinho. Que saudades.
Meu Porto
Revoltado e penitente
Invicto p'ra tanta gente
Só por ti és derrotado
Nas margens
Do rio que te desflora
Há um vulcão que demora
E dorme sempre acordado
O espectáculo vai ser muito bonito, tenho a certeza, mas o tempo o dirá. Para já há só muita vontade, muita alegria - o trampolim certo, agora é só saber saltar nele. O primeiro ensaio prolongou-se. Tenho de apanhar um táxi. A janela está aberta, inclino-me e digo-lhe boa tarde antes de entrar. Ele não me responde, pelo menos eu não ouvi. Curiosamente isso não me chateia nada. Sento-me: é para Campanhã, por favor. Ele compensa a falta de chá não falando durante a corrida e deixa-me saborear o que o comboio para São Bento não mostra.
já que é assim, requalifico
fumo mais um pico
e até a luz do Outono
me há-de parecer Paris
o Aleixo
o Cerco e o Lagarteiro
vão tomar
banho numa tina de verniz
o lindo verniz que pinta
as unhas da sociedade
muito verniz, pouca tinta
em nome da liberdade
é nos bairros camarários
que definham os salários
mas que mal é que isso tem
se o euro já aí vem
- é bem!
E oiço a menina do rádio-táxi - crrrrsssshhhhh, é o binte e óito à circunbalaçoung - e o meu motorista continua calado e eu agradeço-lhe cá dentro por isso - e penso que só falta ouvir, como no Canto Nono, ó coleigas, num bamos falar tuodos ao miesmo tiempo, qu'ist'assim ninguém s'intiende! E olho o Porto, o Porto é caudaloso, continua caudaloso como o rio que o desflora, mesmo requalificado.
dez cêntimos de fachada
trocados por votos valem cem
fica requalificada
a gaiola dos coelhos
e o Bonfim não sai da beira
de São Roque da Lameira
e os novos que já estão velhos
podem ficar com a bosófia
droga dura, dura bófia
linha de circunvalação
São Vítor e Aldoar
João de Deus e Campinas
tudo a requalificar
pó de talco pelas narinas
- é bem!
(...)
resumindo e concluindo:
re-qua-li-fi-car, é lindo!
Porto bai naite
Porto bai dei
requalifica-te tu
que eu me requalificarei
No fim da corrida descubro que não viajei só com o taxista mais calado do Porto, mas também com o mais simpático. Ele há surpresas... E entro na estação feia demais para ser a última coisa que se vê de uma cidade assim. E entro no comboio onde - ainda não o sei - farei uma concha contra a janela para esconder as lágrimas que se empurrarão umas às outras sobre as poucas páginas de um pequeno texto chamado "Morreste-me" de um certo escritor com a cara tuoda esburacada.
Daqui eu fui embora sem vontade
Aqui eu renasci p'rá liberdade
Meu Porto, deixa-andar, nunca-fiando
Que me dás de contrabando
A mentira e a verdade
[As melhores partes deste texto devem-se ao José Mário Branco, com um dedito do Carlos Tê no Répe da Requalificação. Se quiserem saber a que soa... chama-se "O Porto a oito vozes".]