sexta-feira, fevereiro 27, 2004
Para o Diácono Que Remédio!...
"O acto sexual é para fazer filhos"
- disse ele
Um poema de Natália Correia a João Morgado (CDS)
"O acto sexual é para ter filhos" - disse, com toda a boçalidade, o deputado do CDS no debate anteontem sobre a legalização do aborto. A resposta em poema, que ontem fazia rir todas as bancadas parlamentares, veio de Natália Correia. Aqui fica:
Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai de um só rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -
uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado."
in Diário de Lisboa, 5 de Abril de 1982
"O acto sexual é para fazer filhos"
- disse ele
Um poema de Natália Correia a João Morgado (CDS)
"O acto sexual é para ter filhos" - disse, com toda a boçalidade, o deputado do CDS no debate anteontem sobre a legalização do aborto. A resposta em poema, que ontem fazia rir todas as bancadas parlamentares, veio de Natália Correia. Aqui fica:
Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai de um só rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -
uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado."
in Diário de Lisboa, 5 de Abril de 1982
Brêiquingue Niús
Encontrei nos Marretas o linque para esta notícia assustadora: sexo oral pode provocar cancro.
Contudo, confesso que fiquei aliviada quando vi que os resultados desta investigação (?!) são noticiados no Correio da Manhã, onde se afirma que "há uma ligação entre casos de cancro oral e as práticas de sexo oral – nomeadamente ‘cunnilingus’ e ‘fellatio’."
Gostava só que me explicassem em que consiste esse "nomeadamente"! Isto uma pessoa pensa que já sabe tudo e afinal...
Encontrei nos Marretas o linque para esta notícia assustadora: sexo oral pode provocar cancro.
Contudo, confesso que fiquei aliviada quando vi que os resultados desta investigação (?!) são noticiados no Correio da Manhã, onde se afirma que "há uma ligação entre casos de cancro oral e as práticas de sexo oral – nomeadamente ‘cunnilingus’ e ‘fellatio’."
Gostava só que me explicassem em que consiste esse "nomeadamente"! Isto uma pessoa pensa que já sabe tudo e afinal...
terça-feira, fevereiro 24, 2004
Lost In Translation
Antes tarde que nunca!
É um filme maravilhoso. Passei hora e meia de encantamento, identificação e nostalgia, hora e meia de belíssimo cinema e actores apaixonantes. Hora e meia de poesia, hora e meia de felicidade. Já ganhei a noite. É bom, apaixonar-me por um olhar, assim sem reservas, sem compromissos, sem peso... como o amor estranho e tão comum que o olhar de Sofia partilha connosco.
For relaxing times, make it SunTory time...
Antes tarde que nunca!
É um filme maravilhoso. Passei hora e meia de encantamento, identificação e nostalgia, hora e meia de belíssimo cinema e actores apaixonantes. Hora e meia de poesia, hora e meia de felicidade. Já ganhei a noite. É bom, apaixonar-me por um olhar, assim sem reservas, sem compromissos, sem peso... como o amor estranho e tão comum que o olhar de Sofia partilha connosco.
For relaxing times, make it SunTory time...
segunda-feira, fevereiro 23, 2004
Dia Z, de Zeca
Foi em 1987, apoiado por amigos, abandonado por um estado democrático nascido sob o seu canto, que morreu Zeca Afonso. Não foi só um músico, não foi só um poeta, não foi só um professor, não foi só um apaixonado temperamental, um alinhado-desalinhado, um espírito livre, honesto, rico e humanista. E como tantos destes espíritos, não foi só um filantropo-misantropo - a segunda talvez não por opção, mas por necessidade. Não é só um símbolo. É parte da nossa identidade. Que diria ele do que (re)vivemos hoje?
Balada do Outono
Águas
E pedras do rio
Meu sono vazio
Não vão
Acordar
Águas
Das fontes
calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto
A cantar
Rios que vão dar ao mar
Deixem meus olhos secar
Águas
Das fontes calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto
A cantar
Águas
Do rio correndo
Poentes morrendo
P'ras bandas do mar
Águas
Das fontes calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto
A cantar
Rios que vão dar ao mar
Deixem meus olhos secar
Águas
Das fontes calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto
A cantar
Foi em 1987, apoiado por amigos, abandonado por um estado democrático nascido sob o seu canto, que morreu Zeca Afonso. Não foi só um músico, não foi só um poeta, não foi só um professor, não foi só um apaixonado temperamental, um alinhado-desalinhado, um espírito livre, honesto, rico e humanista. E como tantos destes espíritos, não foi só um filantropo-misantropo - a segunda talvez não por opção, mas por necessidade. Não é só um símbolo. É parte da nossa identidade. Que diria ele do que (re)vivemos hoje?
Balada do Outono
Águas
E pedras do rio
Meu sono vazio
Não vão
Acordar
Águas
Das fontes
calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto
A cantar
Rios que vão dar ao mar
Deixem meus olhos secar
Águas
Das fontes calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto
A cantar
Águas
Do rio correndo
Poentes morrendo
P'ras bandas do mar
Águas
Das fontes calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto
A cantar
Rios que vão dar ao mar
Deixem meus olhos secar
Águas
Das fontes calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto
A cantar
domingo, fevereiro 22, 2004
Ah, grande homem!
Fiquei siderado com a coluna A quatro mãos no Mil Folhas desta semana. João Barrento é um homem inteligentíssimo, já o sabia, delicio-me sempre com a sua escrita, a sua calma, a sua clarividência. Mas tenho de lhe agradecer por este texto. Eu andava a precisar de ler isto, ajuda à reflexão, ajuda à paciência, ajuda a sentir que vale a pena pensar e tentar agir como se pensa. Apesar de estar longe de ser um texto optimista.
Como não consigo aceder ao Mil Folhas, tomem lá.
E O DIÁLOGO?
Cai-me do texto de Walter Benjamin a frase que me dá a deixa: "Vai-se perdendo a liberdade do diálogo". Entrámos há algum tempo, como diz o título do livro, numa "Rua de sentido único" em que ninguém parece ir ao encontro de ninguém. "Ir ao encontro de": é esta, desde Sócrates, a essência do diálogo. O verbo alemão usado por Benjamin ("eingehen auf") abre-se num leque de sentidos que não encontro muito postos em prática por aí hoje: ser receptivo ao pensamento do outro, entrar nele, prolongá-lo. Como no método socrático, a maiêutica: pretende-se trazer à luz, progressivamente, uma ideia, arrancá-la ao limbo obscuro ou ambivalente onde se encontra - para proveito geral. Em suma, dar espaço ao adversário. Eu sei: no futebol, matéria quase exclusiva do não-diálogo nas formas actuais de sociabilidade, isso é fatal. Na guerra, forma quase exclusiva de ocupação de alguns políticos hoje, ainda mais. Na concorrência, único modo de estar no mundo para a mentalidade "ganhadora" dominante, também. Mas a convivência (a "democrática", precisamente) tem outras regras.
O que vejo mais, com raras excepções, entre aqueles de quem mais se esperaria que praticassem o diálogo (para proveito geral, entende-se) - "agentes culturais", entrevistadores, apresentadores, jornalistas, professores, amigos entre si (é caso para dizer, mimetizando o anúncio: "Amigos?" Amigo era o interlocutor de Sócrates, o "leitor amigo" dos diálogos dos românticos alemães em 1800, o "outro" da filosofia de Buber e Lévinas, ainda há pouco tempo) - o que vejo é a vontade, crispada ou irritada, de fazer prevalecer, sem argumentos que se vejam, uma opinião, de "arrasar" tudo e todos.
Basta olhar para o espaço público português de hoje, praticamente reduzido à guerra das televisões: desconhecem-se totalmente os princípios básicos do diálogo (e há espaço público que se forme e se firme sem diálogo?), como os da argumentação, da igualdade e da solidariedade entre parceiros. Continuamos a ser mestres no espírito do cacetismo (talvez porque o caciquismo não foi erradicado, mas regressou), o que conta é o achincalhamento, a fuga ao debate aberto, o entrincheiramento em opiniões cristalizadas, com a artilharia sempre pronta a disparar sobre o outro, simplesmente para fazer estragos, para desestabilizar e despistar. Ou então é o diálogo de surdos: cada um a disparar em direcções diferentes, a falar para si próprio, numa feira ruidosa em que ninguém se entende: o outro não existe. E quando o outro não existe, não há diálogo.
O universo concorrencial e empresarial dominante, mesmo em sectores que tradicional e intrinsecamente lhe são estranhos, a histeria do chamado terrorismo, resultante precisamente da incapacidade de diálogo livre, até mesmo a cultura demagogicamente pluralista, em que cada um - isto se não se chamar George W.Bush ou se não for seu acólito - faz e deixa fazer, acabaram com a velha arte do diálogo. Para não falar já do diálogo silencioso com as coisas - esse é o grande ausente, no meio da desconversa sem diálogo e cheia de ruído em que vivemos, que não sabe com entrar em relação com um objecto (um interlocutor) que simplesmente está aí e tem de ser aceite. Isto implicaria a aquiescência a um outro princípio, proclamado pelo menos desde a Constituição americana (que ironia!), mas que é cada vez mais letra morta: o da relação livre como lei universal. Os tempos vão de feição para os sofistas, aos Sócrates solitários espera-os a cicuta. Vale tudo para impor a "doxa", ninguém parece estar muito interessado (ou ter tempo para isso) em abrir caminho até à verdade possível. Também se podia dar outro nome à coisa, numa palavra e sem comentários: intolerância.
Fiquei siderado com a coluna A quatro mãos no Mil Folhas desta semana. João Barrento é um homem inteligentíssimo, já o sabia, delicio-me sempre com a sua escrita, a sua calma, a sua clarividência. Mas tenho de lhe agradecer por este texto. Eu andava a precisar de ler isto, ajuda à reflexão, ajuda à paciência, ajuda a sentir que vale a pena pensar e tentar agir como se pensa. Apesar de estar longe de ser um texto optimista.
Como não consigo aceder ao Mil Folhas, tomem lá.
E O DIÁLOGO?
Cai-me do texto de Walter Benjamin a frase que me dá a deixa: "Vai-se perdendo a liberdade do diálogo". Entrámos há algum tempo, como diz o título do livro, numa "Rua de sentido único" em que ninguém parece ir ao encontro de ninguém. "Ir ao encontro de": é esta, desde Sócrates, a essência do diálogo. O verbo alemão usado por Benjamin ("eingehen auf") abre-se num leque de sentidos que não encontro muito postos em prática por aí hoje: ser receptivo ao pensamento do outro, entrar nele, prolongá-lo. Como no método socrático, a maiêutica: pretende-se trazer à luz, progressivamente, uma ideia, arrancá-la ao limbo obscuro ou ambivalente onde se encontra - para proveito geral. Em suma, dar espaço ao adversário. Eu sei: no futebol, matéria quase exclusiva do não-diálogo nas formas actuais de sociabilidade, isso é fatal. Na guerra, forma quase exclusiva de ocupação de alguns políticos hoje, ainda mais. Na concorrência, único modo de estar no mundo para a mentalidade "ganhadora" dominante, também. Mas a convivência (a "democrática", precisamente) tem outras regras.
O que vejo mais, com raras excepções, entre aqueles de quem mais se esperaria que praticassem o diálogo (para proveito geral, entende-se) - "agentes culturais", entrevistadores, apresentadores, jornalistas, professores, amigos entre si (é caso para dizer, mimetizando o anúncio: "Amigos?" Amigo era o interlocutor de Sócrates, o "leitor amigo" dos diálogos dos românticos alemães em 1800, o "outro" da filosofia de Buber e Lévinas, ainda há pouco tempo) - o que vejo é a vontade, crispada ou irritada, de fazer prevalecer, sem argumentos que se vejam, uma opinião, de "arrasar" tudo e todos.
Basta olhar para o espaço público português de hoje, praticamente reduzido à guerra das televisões: desconhecem-se totalmente os princípios básicos do diálogo (e há espaço público que se forme e se firme sem diálogo?), como os da argumentação, da igualdade e da solidariedade entre parceiros. Continuamos a ser mestres no espírito do cacetismo (talvez porque o caciquismo não foi erradicado, mas regressou), o que conta é o achincalhamento, a fuga ao debate aberto, o entrincheiramento em opiniões cristalizadas, com a artilharia sempre pronta a disparar sobre o outro, simplesmente para fazer estragos, para desestabilizar e despistar. Ou então é o diálogo de surdos: cada um a disparar em direcções diferentes, a falar para si próprio, numa feira ruidosa em que ninguém se entende: o outro não existe. E quando o outro não existe, não há diálogo.
O universo concorrencial e empresarial dominante, mesmo em sectores que tradicional e intrinsecamente lhe são estranhos, a histeria do chamado terrorismo, resultante precisamente da incapacidade de diálogo livre, até mesmo a cultura demagogicamente pluralista, em que cada um - isto se não se chamar George W.Bush ou se não for seu acólito - faz e deixa fazer, acabaram com a velha arte do diálogo. Para não falar já do diálogo silencioso com as coisas - esse é o grande ausente, no meio da desconversa sem diálogo e cheia de ruído em que vivemos, que não sabe com entrar em relação com um objecto (um interlocutor) que simplesmente está aí e tem de ser aceite. Isto implicaria a aquiescência a um outro princípio, proclamado pelo menos desde a Constituição americana (que ironia!), mas que é cada vez mais letra morta: o da relação livre como lei universal. Os tempos vão de feição para os sofistas, aos Sócrates solitários espera-os a cicuta. Vale tudo para impor a "doxa", ninguém parece estar muito interessado (ou ter tempo para isso) em abrir caminho até à verdade possível. Também se podia dar outro nome à coisa, numa palavra e sem comentários: intolerância.
Ah, grande mulher!
Demita-se.
Assim se chama o artigo de Ana Sá Lopes na última página do Público de hoje. Finalmente alguém que chama os bois pelos nomes e assim expõe implacavelmente o ridículo do preconceito arrogante e bacoco. Se querem saber a minha opinião, a família de ASL está, sempre, de parabéns.
Palmas!
Demita-se.
Assim se chama o artigo de Ana Sá Lopes na última página do Público de hoje. Finalmente alguém que chama os bois pelos nomes e assim expõe implacavelmente o ridículo do preconceito arrogante e bacoco. Se querem saber a minha opinião, a família de ASL está, sempre, de parabéns.
Palmas!
sábado, fevereiro 21, 2004
Névoa
V
Um homem dorme à porta de sua casa, do outro lado da rua. As mantas que o cobrem, enquanto r. fuma à janela, protegem-no do frio que o seu tecto expulsa, protegem-no das cinzas que r. lança ao vento como se de uma oferenda se tratasse. Como se o homem prostrado dormisse no altar das suas fés, ícone de braços caídos ao qual presta culto e cuja benção recebe. Nada poderia ser mais a despropósito do que prestar culto a um homem cuja história não conhece, não para além de algumas regras básicas do seu quotidiano. A cama de mantas e cartão tem a cabeceira orientada para norte, com reduzida margem de erro pode dizer-se que abrangerá os dois nortes e os chineses dizem que dormir com a cabeça para norte previne as insónias, talvez por isso se deite o homem tão cedo, sempre mais cedo do que quem o observa.
Enquanto fuma r. tem perto de si um pequeno animal em aflição, sente que r. vai tombar e inquieta-se em gemidos de bicho doméstico que não conhece o mato mas que o pressente no seu instinto desperto. A sua brancura não tem nada de puro, tem as manchas de toda uma evolução, e vive sem saber por que razão, vive sob um tecto mas sem ele viveria, tal como o cristo deitado sob as arcadas e sob a vigilância atenta dos gabinetes que se constroem sobre o seu templo, gabinetes vazios de executivos, a esta hora já cada um estará sob o seu próprio tecto.
Tê-lo-á conseguido um dia, o objecto recostado da sua privada liturgia? Saberá ele o que é estar sob o seu próprio tecto, cozinhar a sua própria sopa para o almoço e para o jantar, longe das filas, longe da mais completa miséria? E pensará r. que as suas próprias misérias matam tanto como as dele? Talvez não. Mas o que se pensa pode estar quase intangivelmente distante do que se sente, e mente quem diz o contrário.
Sente-se viver, quando chora, mas apenas porque sente que está a morrer, pode até ser apenas uma daquelas mortes quotidianas, aquelas que quase inevitavelmente anunciam um renascimento, mas essa diferença em essência não se lê na sua violência. Logo r., que tanto deseja morrer durante o sono, haveria de ser tão consciente de todas as suas mortes e da sua crueldade, haveria de viver cada uma sonhando-a a última e sabendo-a novamente a primeira. E haveria de se julgar como a outro julgaria por se deixar morrer pequeno, triste e cansado e não na glória da antevisão da reencarnação. Quem nestes fenómenos incorpóreos gostaria de acreditar e não consegue deixa-se facilmente enredar por estes simbolismos quotidianos sem perceber como a morte se espalha assim tão antes do tempo. E quando finalmente percebe parece sempre tarde demais, tarde demais para quem já não consegue apenas viver. Mas julgar é sempre possível. E a morte, essa consegue sempre tornar-se ainda mais dura, dolorosa e prolongada do que a vida, pois se quando é a vida que nos parece demasiado dura, dolorosa e prolongada não é mais do que morte que se insinua por ela adentro. Não é mais do que um vulgar terror, como aqueles que todos já vimos nos filmes ou que ouvimos em relatos sinistros ou, caso felizmente mais raro, passámos, o terror petrificante de nos sabermos inevitavelmente perdidos, pois nada no nosso percurso alguma vez conseguirá modificar a meta. Se a bigorna ou o piano tombam sobre a cabeça do desenho animado este não se moverá, abrirá boca e olhos num inestético esgar, libertará algum som gutural ou outro mais estridente, daqueles ditos irritantes, enervantes, fura-tímpanos, deselegantes, desagradáveis, enfim, um grito, um berro. Mas mexer-se? Fugir? Escapar? Correr? Não. Paralisia total. E assim cai a morte, todos os dias, em tantas cabeças que se mantêm à espera de uma mão amiga do Isaac Newton.
Assim cai a morte na cabeça de r. sem que r. se mova. Assim cai a morte na cabeça de ambos. E eis que a névoa ganha um nome, um nome possível.
Sem final feliz.
V
Um homem dorme à porta de sua casa, do outro lado da rua. As mantas que o cobrem, enquanto r. fuma à janela, protegem-no do frio que o seu tecto expulsa, protegem-no das cinzas que r. lança ao vento como se de uma oferenda se tratasse. Como se o homem prostrado dormisse no altar das suas fés, ícone de braços caídos ao qual presta culto e cuja benção recebe. Nada poderia ser mais a despropósito do que prestar culto a um homem cuja história não conhece, não para além de algumas regras básicas do seu quotidiano. A cama de mantas e cartão tem a cabeceira orientada para norte, com reduzida margem de erro pode dizer-se que abrangerá os dois nortes e os chineses dizem que dormir com a cabeça para norte previne as insónias, talvez por isso se deite o homem tão cedo, sempre mais cedo do que quem o observa.
Enquanto fuma r. tem perto de si um pequeno animal em aflição, sente que r. vai tombar e inquieta-se em gemidos de bicho doméstico que não conhece o mato mas que o pressente no seu instinto desperto. A sua brancura não tem nada de puro, tem as manchas de toda uma evolução, e vive sem saber por que razão, vive sob um tecto mas sem ele viveria, tal como o cristo deitado sob as arcadas e sob a vigilância atenta dos gabinetes que se constroem sobre o seu templo, gabinetes vazios de executivos, a esta hora já cada um estará sob o seu próprio tecto.
Tê-lo-á conseguido um dia, o objecto recostado da sua privada liturgia? Saberá ele o que é estar sob o seu próprio tecto, cozinhar a sua própria sopa para o almoço e para o jantar, longe das filas, longe da mais completa miséria? E pensará r. que as suas próprias misérias matam tanto como as dele? Talvez não. Mas o que se pensa pode estar quase intangivelmente distante do que se sente, e mente quem diz o contrário.
Sente-se viver, quando chora, mas apenas porque sente que está a morrer, pode até ser apenas uma daquelas mortes quotidianas, aquelas que quase inevitavelmente anunciam um renascimento, mas essa diferença em essência não se lê na sua violência. Logo r., que tanto deseja morrer durante o sono, haveria de ser tão consciente de todas as suas mortes e da sua crueldade, haveria de viver cada uma sonhando-a a última e sabendo-a novamente a primeira. E haveria de se julgar como a outro julgaria por se deixar morrer pequeno, triste e cansado e não na glória da antevisão da reencarnação. Quem nestes fenómenos incorpóreos gostaria de acreditar e não consegue deixa-se facilmente enredar por estes simbolismos quotidianos sem perceber como a morte se espalha assim tão antes do tempo. E quando finalmente percebe parece sempre tarde demais, tarde demais para quem já não consegue apenas viver. Mas julgar é sempre possível. E a morte, essa consegue sempre tornar-se ainda mais dura, dolorosa e prolongada do que a vida, pois se quando é a vida que nos parece demasiado dura, dolorosa e prolongada não é mais do que morte que se insinua por ela adentro. Não é mais do que um vulgar terror, como aqueles que todos já vimos nos filmes ou que ouvimos em relatos sinistros ou, caso felizmente mais raro, passámos, o terror petrificante de nos sabermos inevitavelmente perdidos, pois nada no nosso percurso alguma vez conseguirá modificar a meta. Se a bigorna ou o piano tombam sobre a cabeça do desenho animado este não se moverá, abrirá boca e olhos num inestético esgar, libertará algum som gutural ou outro mais estridente, daqueles ditos irritantes, enervantes, fura-tímpanos, deselegantes, desagradáveis, enfim, um grito, um berro. Mas mexer-se? Fugir? Escapar? Correr? Não. Paralisia total. E assim cai a morte, todos os dias, em tantas cabeças que se mantêm à espera de uma mão amiga do Isaac Newton.
Assim cai a morte na cabeça de r. sem que r. se mova. Assim cai a morte na cabeça de ambos. E eis que a névoa ganha um nome, um nome possível.
Sem final feliz.
sexta-feira, fevereiro 20, 2004
Os tempos hão-de correr, Miguel, hão-de correr...
O país retrógrado instalou-se no poder. Em segurança, saiem das tocas todos os espíritos naftalíneos. Cheira mal! Abram as janelas! Abram os armários!
O país retrógrado instalou-se no poder. Em segurança, saiem das tocas todos os espíritos naftalíneos. Cheira mal! Abram as janelas! Abram os armários!
Névoa
IV
Os propósitos raramente são claros e vãos são os esforços para os clarear e clarificar. Para quê saber o porquê e que sinais outros definiriam este amor, tal caminho nos levaria ao propósito deste mesmo amor e rapidamente surgiria a melancólica conclusão de que dificilmente se encontrarão coisas mais a despropósito do que as coisas que mais sentimos essenciais, este amor, como qualquer outro, é bem a imagem disso. Se ambos poderiam viver um sem o outro, embora sufoquem e se sintam morrer se frente à mais remota possibilidade de que tal aconteça, então qual o propósito, se ambos são a mais importante rocha de sustento um do outro, sem a qual ambos se construiriam sobre outro qualquer alicerce que surgisse no caminho, como saber então se os outros prepararam este ou se este é apenas consequência de outro qualquer despropósito, como saber, como saber. Se tantas certezas crescem no interior de ambos, como fazê-las vivas conhecendo as do outro. As certezas surgem tão a despropósito como as dúvidas, se ambas fazem viver este amor tão fortemente como podem matá-lo se as quantidades continuarem a ser despropositadamente desreguladas.
IV
Os propósitos raramente são claros e vãos são os esforços para os clarear e clarificar. Para quê saber o porquê e que sinais outros definiriam este amor, tal caminho nos levaria ao propósito deste mesmo amor e rapidamente surgiria a melancólica conclusão de que dificilmente se encontrarão coisas mais a despropósito do que as coisas que mais sentimos essenciais, este amor, como qualquer outro, é bem a imagem disso. Se ambos poderiam viver um sem o outro, embora sufoquem e se sintam morrer se frente à mais remota possibilidade de que tal aconteça, então qual o propósito, se ambos são a mais importante rocha de sustento um do outro, sem a qual ambos se construiriam sobre outro qualquer alicerce que surgisse no caminho, como saber então se os outros prepararam este ou se este é apenas consequência de outro qualquer despropósito, como saber, como saber. Se tantas certezas crescem no interior de ambos, como fazê-las vivas conhecendo as do outro. As certezas surgem tão a despropósito como as dúvidas, se ambas fazem viver este amor tão fortemente como podem matá-lo se as quantidades continuarem a ser despropositadamente desreguladas.
A ver se aprendo
Venho com pressa, no trânsito, a cada minuto aumenta a quantidade de condutores incompetentes que andam na estrada como na vida, marimbando-se para os outros, e eu, para não variar, passo-me:
"Mas hoje toda a gente tirou o dia para me lixar a vida?!!!"
Neste preciso momento entra-me uma pestana para o olho - quem usa lentes de contacto sabe de que drama falo - e tenho de conduzir uns oitocentos metros com uma lente na boca e um olho fechado em lacrimejar contínuo. Ora toma! A ver se aprendes!
Venho com pressa, no trânsito, a cada minuto aumenta a quantidade de condutores incompetentes que andam na estrada como na vida, marimbando-se para os outros, e eu, para não variar, passo-me:
"Mas hoje toda a gente tirou o dia para me lixar a vida?!!!"
Neste preciso momento entra-me uma pestana para o olho - quem usa lentes de contacto sabe de que drama falo - e tenho de conduzir uns oitocentos metros com uma lente na boca e um olho fechado em lacrimejar contínuo. Ora toma! A ver se aprendes!
Hoje é o meu aniversário
Não se perdeu nenhuma coisa em mim
Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Não se perdeu nenhuma coisa em mim
Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.
Sophia de Mello Breyner Andresen
quinta-feira, fevereiro 19, 2004
Eu respondia-lhe...
... mas só com isto já estou a gastar uma frase inteirinha, de certeza que já se me acabaram os créditos.
... mas só com isto já estou a gastar uma frase inteirinha, de certeza que já se me acabaram os créditos.
Névoa
III
O dia da morte ficaria definido tal como o dia do abandono o ficaria, se fosse um abandono violento e marcante, uma morte de morrer e não de se deixar morrer, se fosse suficientemente romanesco nunca condenaria r. a caminhar atrás de s. em forma de névoa, como todos os outros caminham atrás de r., s. teria de guardar o seu rosto, seria forçoso que o olhasse com uma perplexidade regular, r. nunca seria parte da névoa de s., antes o poço da morte, nunca caminharia como alma penada ainda viva, indefinida em contorno e essência, e se um dia parisse, s. não visitaria a sua cria, mas quando finalmente morresse s. iria ao seu funeral porque a presença de r. estaria tão viva em s. que s. daria necessariamente pela sua morte.
Por isso não responde quando s. lhe pergunta por que tanto se incomoda com as névoas das suas vidas, as névoas carregadas de defuntos, e quanto mais s. profere as suas elegias mais as suas névoas entram pelo olhar de r. e o turvam e lhe irritam os olhos que logo exigem as lágrimas que humilham e sugam. Quase preferiria ser um fantasma, morrer já para não viver no pavor de poder vir a morrer, ser um espectro como esse que s. diz não existir, se calhar porque largou a s. para tomar conta de r., mudou de hospedeiro, mas não é um vírus, talvez por isso possa ter largado o hospedeiro original para tomar conta de um outro, r. quer crer que sim e na realidade não terá muitas razões para crer o contrário.
s. preferiria ser o assassino das névoas de r., mas r. não deixa, o que é seu é seu e se o não fosse r. não seria hoje quem é e talvez o amor de s. não fosse como é, quem sabe por que delirantes razões se amam e se se amariam do mesmo modo se se tivessem conhecido outros, noutro tempo, noutro lugar, com outros elementos da mesma velha névoa. Qual deles terá coragem de dizer que gostaria que o outro lhe chegasse branco às mãos, s., que nunca abdicaria do seu caminho mas que gostaria que o outro pudesse voltar atrás e abdicar do seu? Como saberemos se este amor nasceu apenas de uma contingência ou se prepará-lo foi função dos outros, como saberemos se seria igual, não, igual não seria por certo, melhor ou pior, como saberemos como seria se as névoas de ambos não existissem, como saberemos, e para quê?
III
O dia da morte ficaria definido tal como o dia do abandono o ficaria, se fosse um abandono violento e marcante, uma morte de morrer e não de se deixar morrer, se fosse suficientemente romanesco nunca condenaria r. a caminhar atrás de s. em forma de névoa, como todos os outros caminham atrás de r., s. teria de guardar o seu rosto, seria forçoso que o olhasse com uma perplexidade regular, r. nunca seria parte da névoa de s., antes o poço da morte, nunca caminharia como alma penada ainda viva, indefinida em contorno e essência, e se um dia parisse, s. não visitaria a sua cria, mas quando finalmente morresse s. iria ao seu funeral porque a presença de r. estaria tão viva em s. que s. daria necessariamente pela sua morte.
Por isso não responde quando s. lhe pergunta por que tanto se incomoda com as névoas das suas vidas, as névoas carregadas de defuntos, e quanto mais s. profere as suas elegias mais as suas névoas entram pelo olhar de r. e o turvam e lhe irritam os olhos que logo exigem as lágrimas que humilham e sugam. Quase preferiria ser um fantasma, morrer já para não viver no pavor de poder vir a morrer, ser um espectro como esse que s. diz não existir, se calhar porque largou a s. para tomar conta de r., mudou de hospedeiro, mas não é um vírus, talvez por isso possa ter largado o hospedeiro original para tomar conta de um outro, r. quer crer que sim e na realidade não terá muitas razões para crer o contrário.
s. preferiria ser o assassino das névoas de r., mas r. não deixa, o que é seu é seu e se o não fosse r. não seria hoje quem é e talvez o amor de s. não fosse como é, quem sabe por que delirantes razões se amam e se se amariam do mesmo modo se se tivessem conhecido outros, noutro tempo, noutro lugar, com outros elementos da mesma velha névoa. Qual deles terá coragem de dizer que gostaria que o outro lhe chegasse branco às mãos, s., que nunca abdicaria do seu caminho mas que gostaria que o outro pudesse voltar atrás e abdicar do seu? Como saberemos se este amor nasceu apenas de uma contingência ou se prepará-lo foi função dos outros, como saberemos se seria igual, não, igual não seria por certo, melhor ou pior, como saberemos como seria se as névoas de ambos não existissem, como saberemos, e para quê?
quarta-feira, fevereiro 18, 2004
Névoa
II
r. nunca conseguiu entender qual era a utilidade das comédias ou nunca teve um mestre competente, se s. insiste em reduzir tudo a coisas práticas digam-lhe o que existe de prático em gastar tempo e dinheiro a rir, o que existe de prático em gastar tempo e dinheiro a chorar, a teoria é igualmente boa para ambos os opostos, óptimo, dois coelhos com uma só cajadada, invalidam-se já aqui os dramas e as comédias de uma assentada, não serão uma e a mesma coisa afinal? E o que é prático e urgente para r. não o é necessariamente para s., o que tira o sono a r. não tira necessariamente a s., desencontram-se assim nas horas e nos espaços dos sonhos, nada poderia suceder de mais grave se é esse o território de eleição do estranho conjunto que formam, estranho como todos os conjuntos, se quando um sonha o outro pragmatiza, e se as posições se forem sucedendo em carrossel sem nunca coincidirem num mesmo ponto? Hipótese aterradora para ambos, hipótese paralisante para ambos, como vamos sair daqui juntos se cada um por si não consegue fazê-lo? r. não sabe porque precisam de ajuda, s. não sabe como ajudar r. e ajudar-se, mau feitio, ambos, novamente não coincidem, agora não coincidem nos momentos em que tão duro amo dá tréguas, se r. tocar uma pedra de gelo gelará logo em seguida, s. deveria compreendê-lo uma vez que gelaria também no seu lugar, r. sabe-o e por isso lhe dói mais e mais se espalha a dor e mais lhe custa encontrar vontade para conseguir novo armistício com o seu próprio interior. Não é possível, no entanto, apontar culpados se a mensagem não foi descodificada, a culpa pode ser de ninguém senão dos alfabetos diferentes que os regem e os atam, a eles que se julgavam a libertação um do outro. Novamente os nós do caminho se percorrem a tempos diferentes, se este navio circula a determinada velocidade e aquele a outra em sentido oposto quanto tempo levarão a cruzar-se, e se a conclusão for que não se cruzarão, a resposta ao problema estará mesmo errada?
E tamanho é o medo de s. que não dá tréguas, se os astros não se alinham hoje convenientemente, se a sorte e o azar estão em confusão, paciência, as pessoas são bichos esquisitos. Espera-se, há-de passar, o travesseiro é o melhor conselheiro, o tempo é o melhor remédio, quem espera sempre alcança, esqueces-te de que o travesseiro só serve para alguma coisa se boa cama fizeste para nela te deitares, r. sabe-o, tem uma relação próxima, de extremos, com a cama, conhece-lhe os caprichos. s. não, prefere esperar, amanhã talvez haja sol e lhe arranque um sorriso com uma piada como se faz com as crianças que se mantêm amuadas e já não sabem por que razão, o grande problema é que os amuos infantis calam fundo nos adultos, nestes dois pelo menos, s. talvez ainda não o saiba, vai ter de aprender, se quiser, por si, se quiser, apenas se quiser.
De qualquer modo não é fácil, demasidados impecilhos surgem a cada esquina e demasiadas quedas se evitam instantes não quantificáveis antes da tragédia, ambos revelam sabê-lo a cada momento, está quase a cair, os banhistas de roupão e o D. Fuas de roupinho, surge a Senhora no último instante, não quantificável, vai-te ó demo, e o cavalo crava os cascos na rocha, é impossível, claro, mas o instante que não existiu torna-se quantificável pela marca na pedra que não assistiu verdadeiramente a tudo, mas onde rumam os turistas em peregrinação, estão protegidas por um tecto agora, as ditas marcas, mais do que muitos se poderão gabar, mesmo que durmam próximos do local do milagre, um tecto.
Não é fácil, pois ambos temem escolher o caminho, ambos temem que o outro sinta que está a ser conduzido, ambos se sabem condutores, ambos querem deixar-se conduzir mas não sabem como dizê-lo ao outro ou a si mesmos. r. sofre a cada dia por não sabê-lo o último, tanto ou mais do que sofreria se o soubesse tal, pois se morresse o dia ficaria assim definido como o dia em que r. morreu, não se juntaria à névoa de dias que r. vê quando olha para trás, dias que perseguem, mal definidos no espaço e no tempo mas instalados em si, com todo o peso sobre os seus ombros. As névoas são o que de mais assustador se pode encontrar na vida, uma estrada que não se segue porque se perde na névoa, uma névoa nos olhos pode não ser nada - ou pode ser a morte que se quer fazer presente, cansada de ser ignorada no quotidiano como se nada fosse - e esta névoa dos dias que perseguem r., de dias e do que os encheu, névoa de gente que em algum tempo tornou tudo mais claro e que agora se perde em contornos e essências, r. não faz nada para esquecê-los, eles esquecem-se a si mesmos dentro de r.
II
r. nunca conseguiu entender qual era a utilidade das comédias ou nunca teve um mestre competente, se s. insiste em reduzir tudo a coisas práticas digam-lhe o que existe de prático em gastar tempo e dinheiro a rir, o que existe de prático em gastar tempo e dinheiro a chorar, a teoria é igualmente boa para ambos os opostos, óptimo, dois coelhos com uma só cajadada, invalidam-se já aqui os dramas e as comédias de uma assentada, não serão uma e a mesma coisa afinal? E o que é prático e urgente para r. não o é necessariamente para s., o que tira o sono a r. não tira necessariamente a s., desencontram-se assim nas horas e nos espaços dos sonhos, nada poderia suceder de mais grave se é esse o território de eleição do estranho conjunto que formam, estranho como todos os conjuntos, se quando um sonha o outro pragmatiza, e se as posições se forem sucedendo em carrossel sem nunca coincidirem num mesmo ponto? Hipótese aterradora para ambos, hipótese paralisante para ambos, como vamos sair daqui juntos se cada um por si não consegue fazê-lo? r. não sabe porque precisam de ajuda, s. não sabe como ajudar r. e ajudar-se, mau feitio, ambos, novamente não coincidem, agora não coincidem nos momentos em que tão duro amo dá tréguas, se r. tocar uma pedra de gelo gelará logo em seguida, s. deveria compreendê-lo uma vez que gelaria também no seu lugar, r. sabe-o e por isso lhe dói mais e mais se espalha a dor e mais lhe custa encontrar vontade para conseguir novo armistício com o seu próprio interior. Não é possível, no entanto, apontar culpados se a mensagem não foi descodificada, a culpa pode ser de ninguém senão dos alfabetos diferentes que os regem e os atam, a eles que se julgavam a libertação um do outro. Novamente os nós do caminho se percorrem a tempos diferentes, se este navio circula a determinada velocidade e aquele a outra em sentido oposto quanto tempo levarão a cruzar-se, e se a conclusão for que não se cruzarão, a resposta ao problema estará mesmo errada?
E tamanho é o medo de s. que não dá tréguas, se os astros não se alinham hoje convenientemente, se a sorte e o azar estão em confusão, paciência, as pessoas são bichos esquisitos. Espera-se, há-de passar, o travesseiro é o melhor conselheiro, o tempo é o melhor remédio, quem espera sempre alcança, esqueces-te de que o travesseiro só serve para alguma coisa se boa cama fizeste para nela te deitares, r. sabe-o, tem uma relação próxima, de extremos, com a cama, conhece-lhe os caprichos. s. não, prefere esperar, amanhã talvez haja sol e lhe arranque um sorriso com uma piada como se faz com as crianças que se mantêm amuadas e já não sabem por que razão, o grande problema é que os amuos infantis calam fundo nos adultos, nestes dois pelo menos, s. talvez ainda não o saiba, vai ter de aprender, se quiser, por si, se quiser, apenas se quiser.
De qualquer modo não é fácil, demasidados impecilhos surgem a cada esquina e demasiadas quedas se evitam instantes não quantificáveis antes da tragédia, ambos revelam sabê-lo a cada momento, está quase a cair, os banhistas de roupão e o D. Fuas de roupinho, surge a Senhora no último instante, não quantificável, vai-te ó demo, e o cavalo crava os cascos na rocha, é impossível, claro, mas o instante que não existiu torna-se quantificável pela marca na pedra que não assistiu verdadeiramente a tudo, mas onde rumam os turistas em peregrinação, estão protegidas por um tecto agora, as ditas marcas, mais do que muitos se poderão gabar, mesmo que durmam próximos do local do milagre, um tecto.
Não é fácil, pois ambos temem escolher o caminho, ambos temem que o outro sinta que está a ser conduzido, ambos se sabem condutores, ambos querem deixar-se conduzir mas não sabem como dizê-lo ao outro ou a si mesmos. r. sofre a cada dia por não sabê-lo o último, tanto ou mais do que sofreria se o soubesse tal, pois se morresse o dia ficaria assim definido como o dia em que r. morreu, não se juntaria à névoa de dias que r. vê quando olha para trás, dias que perseguem, mal definidos no espaço e no tempo mas instalados em si, com todo o peso sobre os seus ombros. As névoas são o que de mais assustador se pode encontrar na vida, uma estrada que não se segue porque se perde na névoa, uma névoa nos olhos pode não ser nada - ou pode ser a morte que se quer fazer presente, cansada de ser ignorada no quotidiano como se nada fosse - e esta névoa dos dias que perseguem r., de dias e do que os encheu, névoa de gente que em algum tempo tornou tudo mais claro e que agora se perde em contornos e essências, r. não faz nada para esquecê-los, eles esquecem-se a si mesmos dentro de r.
A TSF está a passar Polo Norte!!!
Pronto, agora acabaram de vez com as minhas esperanças de que a decadência de inocência mascarada tivesse limites. Se a seguir vier o dueto do JPP com a desinFelix já nem sequer me vou chocar...
Pronto, agora acabaram de vez com as minhas esperanças de que a decadência de inocência mascarada tivesse limites. Se a seguir vier o dueto do JPP com a desinFelix já nem sequer me vou chocar...
terça-feira, fevereiro 17, 2004
Névoa
I
Não é de inteligência que se trata, nem sempre se pode reduzir, ou alargar, depende do ponto de vista, tudo o que move r. à lógica insofismável com que define tudo e classifica tudo e finge compreender tudo. Riam, se quiserem, pois é a mais velha comédia do mundo, aquela em que se tropeça por dentro, sem rasteiras ou com rasteiras diminutas e insignificantes, cuja eficácia só a falta de equilíbrio de quem as sofre, só a falta de equilíbrio de r., justifica. A mais velha comédia do mundo, o medo profundo e mesquinho, acutilante e perfurante, comédia do vácuo, do sopro que tudo tolda excepto a angustiante sensação de se estar infinitamente só, de que r. está infinitamente só e sem norte, ainda que por breves e infinitos instantes, r. sabe-os breves e infinitos e exclusivamente seus.
É preciso alguma dose de generosidade para que se esteja disposto a entrar no desnorte de r., para que s. esteja disposto a entrar no desnorte de r., para que s. se arrisque a ajudar r. a reorientar o ponteiro para o norte magnético, como era, alguns graus para oeste do geográfico, ou seria para leste, o norte magnético porque é esse que importa não é verdade? Aquele que atrai e faz movimentar o ponteiro, muito mais forte do que o outro cardeal inventado e convencionado, mais uma daquelas convenções que nunca incomodaram ninguém e das quais, concerteza, apenas alguns iluminados conhecem as razões. Nem sempre essa generosidade está disponível de imediato, é necessário recorrer ao armazém quando não existe em stock, por vezes tem de ser aprendida sem mestre, como naqueles manuais de línguas, todos nós temos em casa um por abrir, sim, s. não pode esperar que seja r. a ensinar-lhe a generosidade que r. sabe não lhe ser devida por qualquer razão em especial, apenas pelo facto de lhe ser necessária, não será razão suficiente, talvez não, só s. o poderá dizer, só s. tem essa resposta. Que não é lógica, ou r. conhecê-la-ia de certeza e dar-lha-ia de bom grado, é certo.
s. olha r. e perde-se. O seu norte não é mais seguro do que o de r. mas r. sempre julgou que a sua generosidade o fosse, talvez fosse, afinal, engano, não seria a primeira vez, não há-de ser a última, no fim de contas também não é assim tão grave, só mais um vácuo que exige o seu tempo para passar, o seu compasso muito próprio e aglutinador. Mas para r. não há nada pior do que a conversa de circunstância de si para si, se s. é, de facto, parte de r., pois, parece que demora a aperceber-se disso, novamente não se trata de inteligência. É quase como acordar de manhã, olhar-se ao espelho e em vez de dizer vai à merda comentar o tempo que não pára de mudar e perturbar, como se a sua honestidade para consigo não lhe exigisse que se mandasse à merda se fosse caso disso, não exigisse que a vulnerabilidade lhe arrancasse as lágrimas em vez de fazer dizer, então, o filme, gostaste? Não tem lógica, pois não, talvez seja essa a razão da sua tamanha verdade. Ainda que as verdadeiras comédias só possam ser inteligentes, não é necessariamente a inteligência a sua matéria-prima, há muitas coisas muito mais inteligentes do que acabar com uma tarte na cara ou com a cara numa tarte, a ordem dos factores não é muito relevante para o caso.
E as lágrimas querem libertar-se mas o riso não deixa, se se sentem ridicularizadas elas, as lágrimas, recusam-se a sair, recolhem-se e aleijam, é sempre possível sufocar nelas sem nunca as deixar transbordar, pois pois, uma prova de força, não é, com r. não se brinca, gente forte é assim, até em frente ao espelho se insuflam os músculos, para os que vivem verdadeiramente para a cultura da força, física ou não, a existência de um público é um mero pormenor. Mas r. acha que não lhe mete medo por isso, se mete s. também não será pessoa para o aceitar, r. gosta disso em s. e s. gosta disso em r., de qualquer forma não é algo que lhes exija grande generosidade. Que pode r. esperar, já alguém um dia lhe disse que o seu aspecto frágil era um engano, que em si guardava um poço de força, que pode r. fazer se a sua personagem se revelou tão eficaz? Tem muito de autêntica essa personagem, o suficiente para convencer largos públicos, não significa que esteja acordada e disponível a cada momento em que se revela necessária, qualquer um pode falhar uma entrada, é humano. Grave mesmo é quando o actor está em cena e a personagem disso se esquece e o deixa exposto e desavisado, raramente o público se apercebe, embora estranhe, mas o actor sofrerá sempre, ainda assim, achará sempre que deve explicações a quem pagou bilhete e saíu defraudado mesmo sem dar por ela, os públicos são muito menos cruéis quando têm razões para isso do que quando somente as supõem, é profundamente injusto. De algum modo é assim sempre, quando se supõe teme-se estar perante um logro, quando se sabe é possível ser-se beatificamente misericordioso e rejubilar com isso. O público de comédias será provavelmente o pior. E voam as tartes.
I
Não é de inteligência que se trata, nem sempre se pode reduzir, ou alargar, depende do ponto de vista, tudo o que move r. à lógica insofismável com que define tudo e classifica tudo e finge compreender tudo. Riam, se quiserem, pois é a mais velha comédia do mundo, aquela em que se tropeça por dentro, sem rasteiras ou com rasteiras diminutas e insignificantes, cuja eficácia só a falta de equilíbrio de quem as sofre, só a falta de equilíbrio de r., justifica. A mais velha comédia do mundo, o medo profundo e mesquinho, acutilante e perfurante, comédia do vácuo, do sopro que tudo tolda excepto a angustiante sensação de se estar infinitamente só, de que r. está infinitamente só e sem norte, ainda que por breves e infinitos instantes, r. sabe-os breves e infinitos e exclusivamente seus.
É preciso alguma dose de generosidade para que se esteja disposto a entrar no desnorte de r., para que s. esteja disposto a entrar no desnorte de r., para que s. se arrisque a ajudar r. a reorientar o ponteiro para o norte magnético, como era, alguns graus para oeste do geográfico, ou seria para leste, o norte magnético porque é esse que importa não é verdade? Aquele que atrai e faz movimentar o ponteiro, muito mais forte do que o outro cardeal inventado e convencionado, mais uma daquelas convenções que nunca incomodaram ninguém e das quais, concerteza, apenas alguns iluminados conhecem as razões. Nem sempre essa generosidade está disponível de imediato, é necessário recorrer ao armazém quando não existe em stock, por vezes tem de ser aprendida sem mestre, como naqueles manuais de línguas, todos nós temos em casa um por abrir, sim, s. não pode esperar que seja r. a ensinar-lhe a generosidade que r. sabe não lhe ser devida por qualquer razão em especial, apenas pelo facto de lhe ser necessária, não será razão suficiente, talvez não, só s. o poderá dizer, só s. tem essa resposta. Que não é lógica, ou r. conhecê-la-ia de certeza e dar-lha-ia de bom grado, é certo.
s. olha r. e perde-se. O seu norte não é mais seguro do que o de r. mas r. sempre julgou que a sua generosidade o fosse, talvez fosse, afinal, engano, não seria a primeira vez, não há-de ser a última, no fim de contas também não é assim tão grave, só mais um vácuo que exige o seu tempo para passar, o seu compasso muito próprio e aglutinador. Mas para r. não há nada pior do que a conversa de circunstância de si para si, se s. é, de facto, parte de r., pois, parece que demora a aperceber-se disso, novamente não se trata de inteligência. É quase como acordar de manhã, olhar-se ao espelho e em vez de dizer vai à merda comentar o tempo que não pára de mudar e perturbar, como se a sua honestidade para consigo não lhe exigisse que se mandasse à merda se fosse caso disso, não exigisse que a vulnerabilidade lhe arrancasse as lágrimas em vez de fazer dizer, então, o filme, gostaste? Não tem lógica, pois não, talvez seja essa a razão da sua tamanha verdade. Ainda que as verdadeiras comédias só possam ser inteligentes, não é necessariamente a inteligência a sua matéria-prima, há muitas coisas muito mais inteligentes do que acabar com uma tarte na cara ou com a cara numa tarte, a ordem dos factores não é muito relevante para o caso.
E as lágrimas querem libertar-se mas o riso não deixa, se se sentem ridicularizadas elas, as lágrimas, recusam-se a sair, recolhem-se e aleijam, é sempre possível sufocar nelas sem nunca as deixar transbordar, pois pois, uma prova de força, não é, com r. não se brinca, gente forte é assim, até em frente ao espelho se insuflam os músculos, para os que vivem verdadeiramente para a cultura da força, física ou não, a existência de um público é um mero pormenor. Mas r. acha que não lhe mete medo por isso, se mete s. também não será pessoa para o aceitar, r. gosta disso em s. e s. gosta disso em r., de qualquer forma não é algo que lhes exija grande generosidade. Que pode r. esperar, já alguém um dia lhe disse que o seu aspecto frágil era um engano, que em si guardava um poço de força, que pode r. fazer se a sua personagem se revelou tão eficaz? Tem muito de autêntica essa personagem, o suficiente para convencer largos públicos, não significa que esteja acordada e disponível a cada momento em que se revela necessária, qualquer um pode falhar uma entrada, é humano. Grave mesmo é quando o actor está em cena e a personagem disso se esquece e o deixa exposto e desavisado, raramente o público se apercebe, embora estranhe, mas o actor sofrerá sempre, ainda assim, achará sempre que deve explicações a quem pagou bilhete e saíu defraudado mesmo sem dar por ela, os públicos são muito menos cruéis quando têm razões para isso do que quando somente as supõem, é profundamente injusto. De algum modo é assim sempre, quando se supõe teme-se estar perante um logro, quando se sabe é possível ser-se beatificamente misericordioso e rejubilar com isso. O público de comédias será provavelmente o pior. E voam as tartes.
quinta-feira, fevereiro 12, 2004
Dostoyevksy revisitado
Freitas do Amaral diz que o aborto deve ser um crime sem castigo, que a mulher sem culpa não deve ser penalizada - sem culpa significa, depreende-se do texto, violada ou sem recursos - mas que não deve ser aceite o aborto a pedido "por capricho". Suponho que venha mais tarde a apresentar alguma espécie de júri para decidir da legitimidade da decisão íntima de uma mulher que é sua agente e sua primeira vítima. Será que não tem limites a hipocrisia? Será que não tem limites o descaramento, a falta de vergonha na cara?
Crimes sem castigo são os textos que o senhor professor escreve para teatro...
Freitas do Amaral diz que o aborto deve ser um crime sem castigo, que a mulher sem culpa não deve ser penalizada - sem culpa significa, depreende-se do texto, violada ou sem recursos - mas que não deve ser aceite o aborto a pedido "por capricho". Suponho que venha mais tarde a apresentar alguma espécie de júri para decidir da legitimidade da decisão íntima de uma mulher que é sua agente e sua primeira vítima. Será que não tem limites a hipocrisia? Será que não tem limites o descaramento, a falta de vergonha na cara?
Crimes sem castigo são os textos que o senhor professor escreve para teatro...
quarta-feira, fevereiro 11, 2004
All that jazz...
Um enorme coreógrafo que foi um realizador muito particular, um Roy Scheider genial face a uma diáfana Jessica Morte Lange, o corpo, o movimento, o labirinto da criação e da fama, o artista e a pessoa perdendo-se um no outro, o belo e o ridículo, a verdade e a farsa, o amor e o desapego, o apetite pela vida que mascara a pulsão de morte.
Bob Fosse, amanhã, na 2, às 22h. Infelizmente não vou poder ver pela... vigésima vez. Give my regards to Broadway, will you?
Um enorme coreógrafo que foi um realizador muito particular, um Roy Scheider genial face a uma diáfana Jessica Morte Lange, o corpo, o movimento, o labirinto da criação e da fama, o artista e a pessoa perdendo-se um no outro, o belo e o ridículo, a verdade e a farsa, o amor e o desapego, o apetite pela vida que mascara a pulsão de morte.
Bob Fosse, amanhã, na 2, às 22h. Infelizmente não vou poder ver pela... vigésima vez. Give my regards to Broadway, will you?
É tão bonita, a ingenuidade
Com que então eles mentiram-nos, ahn? Cabrões, pá! Isto não se faz, pá! Não há armas de destruição em massa no Iraque, os gajos disseram que havia, man, 'tá mal... Eu assim já não apoiava aquela merda, pá! Assim já não, tivesse eu percebido que eles nos mentiam, pá! Mas como é que eu ia saber, como é que eu ia saber? Se me tivesse passado, remotamente que fosse, pela cabeça, eu ainda tinha pensado um bocadinho, se calhar chegava lá... Mas como é que eu ia saber? Como?!
Com que então eles mentiram-nos, ahn? Cabrões, pá! Isto não se faz, pá! Não há armas de destruição em massa no Iraque, os gajos disseram que havia, man, 'tá mal... Eu assim já não apoiava aquela merda, pá! Assim já não, tivesse eu percebido que eles nos mentiam, pá! Mas como é que eu ia saber, como é que eu ia saber? Se me tivesse passado, remotamente que fosse, pela cabeça, eu ainda tinha pensado um bocadinho, se calhar chegava lá... Mas como é que eu ia saber? Como?!
terça-feira, fevereiro 10, 2004
Ching _ O Poço
O centro Profundo
E no interior disto
o centro que é invisível
o poço que os campos rodeiam -
E que em ti é invisível
Até aprenderes a estar quieto,
A ser assim.
Fecha os olhos.
Não te mexas, diz,
Entra lá dentro,
Respira de mansinho,
Vê-o, agora
Afundando-se em ti
A descer pela garganta abaixo
E no teu ventre.
Podes alcançá-lo?
A tua corda estica?
Podes mantê-lo aí?
Sempre esteve aqui
E sempre há-de estar -
Com a sua profunda água sombria.
Prova-o.
in I Ching, O Livro das Mutações
O centro Profundo
E no interior disto
o centro que é invisível
o poço que os campos rodeiam -
E que em ti é invisível
Até aprenderes a estar quieto,
A ser assim.
Fecha os olhos.
Não te mexas, diz,
Entra lá dentro,
Respira de mansinho,
Vê-o, agora
Afundando-se em ti
A descer pela garganta abaixo
E no teu ventre.
Podes alcançá-lo?
A tua corda estica?
Podes mantê-lo aí?
Sempre esteve aqui
E sempre há-de estar -
Com a sua profunda água sombria.
Prova-o.
in I Ching, O Livro das Mutações
Truta “Cuivre Flamboyant”
Uma mulher só se pode sentir uma diva, logo de manhã. Depois de um duche de “radiant body foam” com extractos de chá verde e de um creme corporal com microesferas de oligoelementos essenciais, eis que chega o momento favorito da toilette de cada mulher: a maquilhagem.
Uma vez que hoje tive algum tempo para dedicar a esse momento tão importante, reparei numa série de coisas fascinantes: que a minha pele tem um tom “porcelain beige”, excepto nas bochechas, onde adquire uma leve tonalidade “sepia passion”. As minhas pálpebras são “blanc diaphane”e “beige delicat”, com um ligeiro sobreado “crepuscule magnifique”. Têm ainda um levíssimo contorno “gris métal”, como complemento às pestanas “granite stone”.
Como sou uma rapariga discreta – e não o catálogo da robialac, como à partida poderia parecer – uso um baton “soleil d’été” e o devido contorno “mauve whisper”.
Quem inventou a maquilhagem devia ser canonizado! Perdoem-me a futilidade, mas hoje não me tratem por Truta Laranja. “Cuivre Flamboyant” assenta-me muito melhor...
Uma mulher só se pode sentir uma diva, logo de manhã. Depois de um duche de “radiant body foam” com extractos de chá verde e de um creme corporal com microesferas de oligoelementos essenciais, eis que chega o momento favorito da toilette de cada mulher: a maquilhagem.
Uma vez que hoje tive algum tempo para dedicar a esse momento tão importante, reparei numa série de coisas fascinantes: que a minha pele tem um tom “porcelain beige”, excepto nas bochechas, onde adquire uma leve tonalidade “sepia passion”. As minhas pálpebras são “blanc diaphane”e “beige delicat”, com um ligeiro sobreado “crepuscule magnifique”. Têm ainda um levíssimo contorno “gris métal”, como complemento às pestanas “granite stone”.
Como sou uma rapariga discreta – e não o catálogo da robialac, como à partida poderia parecer – uso um baton “soleil d’été” e o devido contorno “mauve whisper”.
Quem inventou a maquilhagem devia ser canonizado! Perdoem-me a futilidade, mas hoje não me tratem por Truta Laranja. “Cuivre Flamboyant” assenta-me muito melhor...
quinta-feira, fevereiro 05, 2004
Terça-feira fui ao Porto
-O post da Vermelha picou-me...-
Gosto do Porto, sinto-me lá bem e mal, como em Lisboa, a minha terra. Sempre me senti tripeiro na Ribeira, em Serralves, na baiiiixa, nas ruas e nos cafés... desde que comecei a conhecer o Porto pelos meus pés. Desde sempre.
Nas margens
Deste rio atormentado
É que está dependurado
O nome do meu país
Mistura
Entre a fuga e a procura
Entre o medo e a loucura
Que estão na minha raiz
Gosto de sair na Campanhã e correr para o comboio estacionado na linha número seis com destino a São Bento que já devia ter saído há cinco minutos não fossem a partida de um estar marcada para a exacta hora da chegada do outro e a demora dos passageiros a transferir pesos, bagagens, espíritos e personalidades. O comboio - que já não é feito daqueles vagões sujos, metálicos e castiços que mais pareciam destinados ao transporte de animais ou à filmagem de cenas cinematográficas em que os fugitivos ou viandantes saltam clandestinamente para os vagões em andamento - espera. Eu continuo a correr de um para outro, não sei bem porquê. No meu espírito de lisboeta devo pensar, se partir atrasado não há-de ser por minha causa...
Meu Porto
Muito mais vivo que morto
Tu recusas o conforto
De quem está morto de vez
Por isso
Eu te mando este recado
Porque vivo atormentado
Como o rio que te fez
Saio naquela estação que me habituei a chamar de "a mais bonita do mundo" e sinto que todos me topam, este é mouro, está escrito em alguns olhos, e eu sorrio à ideia e eles sorriem-me de volta sem saber porquê. E está sempre sol quando chego ao Porto. E calmamente subo para a Praça da Batalha de onde em Novembro roubei uma cadeira abandonada - não, não foi daquelas que lá estão pregadas ao chão, sou rijo mas não tanto, não sou do Porto - e olho para o São João, aquela linda fachada onde sei que terei quase inevitavelmente um cartaz bonito para me receber, como que um grande quadro na parede daquela sala de toda a gente.
Daqui houve nome Portugal
Aqui está tudo bem e tudo mal
Meu Porto, és o carinho que me tenho
És a ponte de onde venho
Entre o mar e o quintal
E olho para tudo novamente como na primeira vez, como em cada uma das primeiras vezes. O Porto é um mistério solarento e escuro. O Porto ser-me-á sempre querido e estranho. E sorrio. Vou trabalhar aqui outra vez. Daqui a um mês vou viver aqui um bocadinho. Que saudades.
Meu Porto
Revoltado e penitente
Invicto p'ra tanta gente
Só por ti és derrotado
Nas margens
Do rio que te desflora
Há um vulcão que demora
E dorme sempre acordado
O espectáculo vai ser muito bonito, tenho a certeza, mas o tempo o dirá. Para já há só muita vontade, muita alegria - o trampolim certo, agora é só saber saltar nele. O primeiro ensaio prolongou-se. Tenho de apanhar um táxi. A janela está aberta, inclino-me e digo-lhe boa tarde antes de entrar. Ele não me responde, pelo menos eu não ouvi. Curiosamente isso não me chateia nada. Sento-me: é para Campanhã, por favor. Ele compensa a falta de chá não falando durante a corrida e deixa-me saborear o que o comboio para São Bento não mostra.
já que é assim, requalifico
fumo mais um pico
e até a luz do Outono
me há-de parecer Paris
o Aleixo
o Cerco e o Lagarteiro
vão tomar
banho numa tina de verniz
o lindo verniz que pinta
as unhas da sociedade
muito verniz, pouca tinta
em nome da liberdade
é nos bairros camarários
que definham os salários
mas que mal é que isso tem
se o euro já aí vem
- é bem!
E oiço a menina do rádio-táxi - crrrrsssshhhhh, é o binte e óito à circunbalaçoung - e o meu motorista continua calado e eu agradeço-lhe cá dentro por isso - e penso que só falta ouvir, como no Canto Nono, ó coleigas, num bamos falar tuodos ao miesmo tiempo, qu'ist'assim ninguém s'intiende! E olho o Porto, o Porto é caudaloso, continua caudaloso como o rio que o desflora, mesmo requalificado.
dez cêntimos de fachada
trocados por votos valem cem
fica requalificada
a gaiola dos coelhos
e o Bonfim não sai da beira
de São Roque da Lameira
e os novos que já estão velhos
podem ficar com a bosófia
droga dura, dura bófia
linha de circunvalação
São Vítor e Aldoar
João de Deus e Campinas
tudo a requalificar
pó de talco pelas narinas
- é bem!
(...)
resumindo e concluindo:
re-qua-li-fi-car, é lindo!
Porto bai naite
Porto bai dei
requalifica-te tu
que eu me requalificarei
No fim da corrida descubro que não viajei só com o taxista mais calado do Porto, mas também com o mais simpático. Ele há surpresas... E entro na estação feia demais para ser a última coisa que se vê de uma cidade assim. E entro no comboio onde - ainda não o sei - farei uma concha contra a janela para esconder as lágrimas que se empurrarão umas às outras sobre as poucas páginas de um pequeno texto chamado "Morreste-me" de um certo escritor com a cara tuoda esburacada.
Daqui eu fui embora sem vontade
Aqui eu renasci p'rá liberdade
Meu Porto, deixa-andar, nunca-fiando
Que me dás de contrabando
A mentira e a verdade
[As melhores partes deste texto devem-se ao José Mário Branco, com um dedito do Carlos Tê no Répe da Requalificação. Se quiserem saber a que soa... chama-se "O Porto a oito vozes".]
-O post da Vermelha picou-me...-
Gosto do Porto, sinto-me lá bem e mal, como em Lisboa, a minha terra. Sempre me senti tripeiro na Ribeira, em Serralves, na baiiiixa, nas ruas e nos cafés... desde que comecei a conhecer o Porto pelos meus pés. Desde sempre.
Nas margens
Deste rio atormentado
É que está dependurado
O nome do meu país
Mistura
Entre a fuga e a procura
Entre o medo e a loucura
Que estão na minha raiz
Gosto de sair na Campanhã e correr para o comboio estacionado na linha número seis com destino a São Bento que já devia ter saído há cinco minutos não fossem a partida de um estar marcada para a exacta hora da chegada do outro e a demora dos passageiros a transferir pesos, bagagens, espíritos e personalidades. O comboio - que já não é feito daqueles vagões sujos, metálicos e castiços que mais pareciam destinados ao transporte de animais ou à filmagem de cenas cinematográficas em que os fugitivos ou viandantes saltam clandestinamente para os vagões em andamento - espera. Eu continuo a correr de um para outro, não sei bem porquê. No meu espírito de lisboeta devo pensar, se partir atrasado não há-de ser por minha causa...
Meu Porto
Muito mais vivo que morto
Tu recusas o conforto
De quem está morto de vez
Por isso
Eu te mando este recado
Porque vivo atormentado
Como o rio que te fez
Saio naquela estação que me habituei a chamar de "a mais bonita do mundo" e sinto que todos me topam, este é mouro, está escrito em alguns olhos, e eu sorrio à ideia e eles sorriem-me de volta sem saber porquê. E está sempre sol quando chego ao Porto. E calmamente subo para a Praça da Batalha de onde em Novembro roubei uma cadeira abandonada - não, não foi daquelas que lá estão pregadas ao chão, sou rijo mas não tanto, não sou do Porto - e olho para o São João, aquela linda fachada onde sei que terei quase inevitavelmente um cartaz bonito para me receber, como que um grande quadro na parede daquela sala de toda a gente.
Daqui houve nome Portugal
Aqui está tudo bem e tudo mal
Meu Porto, és o carinho que me tenho
És a ponte de onde venho
Entre o mar e o quintal
E olho para tudo novamente como na primeira vez, como em cada uma das primeiras vezes. O Porto é um mistério solarento e escuro. O Porto ser-me-á sempre querido e estranho. E sorrio. Vou trabalhar aqui outra vez. Daqui a um mês vou viver aqui um bocadinho. Que saudades.
Meu Porto
Revoltado e penitente
Invicto p'ra tanta gente
Só por ti és derrotado
Nas margens
Do rio que te desflora
Há um vulcão que demora
E dorme sempre acordado
O espectáculo vai ser muito bonito, tenho a certeza, mas o tempo o dirá. Para já há só muita vontade, muita alegria - o trampolim certo, agora é só saber saltar nele. O primeiro ensaio prolongou-se. Tenho de apanhar um táxi. A janela está aberta, inclino-me e digo-lhe boa tarde antes de entrar. Ele não me responde, pelo menos eu não ouvi. Curiosamente isso não me chateia nada. Sento-me: é para Campanhã, por favor. Ele compensa a falta de chá não falando durante a corrida e deixa-me saborear o que o comboio para São Bento não mostra.
já que é assim, requalifico
fumo mais um pico
e até a luz do Outono
me há-de parecer Paris
o Aleixo
o Cerco e o Lagarteiro
vão tomar
banho numa tina de verniz
o lindo verniz que pinta
as unhas da sociedade
muito verniz, pouca tinta
em nome da liberdade
é nos bairros camarários
que definham os salários
mas que mal é que isso tem
se o euro já aí vem
- é bem!
E oiço a menina do rádio-táxi - crrrrsssshhhhh, é o binte e óito à circunbalaçoung - e o meu motorista continua calado e eu agradeço-lhe cá dentro por isso - e penso que só falta ouvir, como no Canto Nono, ó coleigas, num bamos falar tuodos ao miesmo tiempo, qu'ist'assim ninguém s'intiende! E olho o Porto, o Porto é caudaloso, continua caudaloso como o rio que o desflora, mesmo requalificado.
dez cêntimos de fachada
trocados por votos valem cem
fica requalificada
a gaiola dos coelhos
e o Bonfim não sai da beira
de São Roque da Lameira
e os novos que já estão velhos
podem ficar com a bosófia
droga dura, dura bófia
linha de circunvalação
São Vítor e Aldoar
João de Deus e Campinas
tudo a requalificar
pó de talco pelas narinas
- é bem!
(...)
resumindo e concluindo:
re-qua-li-fi-car, é lindo!
Porto bai naite
Porto bai dei
requalifica-te tu
que eu me requalificarei
No fim da corrida descubro que não viajei só com o taxista mais calado do Porto, mas também com o mais simpático. Ele há surpresas... E entro na estação feia demais para ser a última coisa que se vê de uma cidade assim. E entro no comboio onde - ainda não o sei - farei uma concha contra a janela para esconder as lágrimas que se empurrarão umas às outras sobre as poucas páginas de um pequeno texto chamado "Morreste-me" de um certo escritor com a cara tuoda esburacada.
Daqui eu fui embora sem vontade
Aqui eu renasci p'rá liberdade
Meu Porto, deixa-andar, nunca-fiando
Que me dás de contrabando
A mentira e a verdade
[As melhores partes deste texto devem-se ao José Mário Branco, com um dedito do Carlos Tê no Répe da Requalificação. Se quiserem saber a que soa... chama-se "O Porto a oito vozes".]
quarta-feira, fevereiro 04, 2004
segunda-feira, fevereiro 02, 2004
Dados do sitemeter
Não me canso de me pasmar com a quantidade de gente que aqui vem ao engano. Aqui fica uma pequena selecção das pesquisas que vieram dar ao nosso humilde blogue, de acordo com os dados do “sitemeter”:
- imagens do cérebro dos disléxicos
- guia para enfeitar chinelas
- esquizóide
- fotografias de oliveira salazar
- sexo com animais
Nota positiva: há menos tarados à procura de pornografia (ou então o conteúdo deste blogue subiu de nível e já não aparece nesses resultados de pesquisa) e os espertalhões cujos descodificadores de TV Cabo piratas avariaram já se conformaram com o facto (ou já perceberam que não é connosco que vão aprender a ver a Sport TV de borla).
Não me canso de me pasmar com a quantidade de gente que aqui vem ao engano. Aqui fica uma pequena selecção das pesquisas que vieram dar ao nosso humilde blogue, de acordo com os dados do “sitemeter”:
- imagens do cérebro dos disléxicos
- guia para enfeitar chinelas
- esquizóide
- fotografias de oliveira salazar
- sexo com animais
Nota positiva: há menos tarados à procura de pornografia (ou então o conteúdo deste blogue subiu de nível e já não aparece nesses resultados de pesquisa) e os espertalhões cujos descodificadores de TV Cabo piratas avariaram já se conformaram com o facto (ou já perceberam que não é connosco que vão aprender a ver a Sport TV de borla).
E pronto!
Uma semana depois da morte de Fehér, no fim da semana em que se dizia que o luto deveria ajudar a trazer a paz ao futebol português, unindo desportistas e adeptos independentemente da cor clubística, o balanço dificilmente seria mais positivo, isto se considerarmos que estamos num país do décimo-quarto mundo, que nem sequer vai participar no Euro 2004, quanto mais organizá-lo:
1- Mourinho acusa o Sporting e diz que gostava de ver Rui Jorge a morrer no campo - este homem é, realmente, uma mente superior;
2- O Sporting acusa Mourinho;
3- Os jogadores do Boavista e do Vitória de Guimarães decidem discutir com os punhos o que não conseguiram discutir com os pés durante noventa minutos;
4- Os adeptos, obviamente, querem entrar na manifestação de alegria desportiva, arremessando tudo o que lhes vem às mãos, nomeadamente cadeiras às cabeças da equipa de arbitragem;
5- Tudo isto no estádio onde, há uma semana, tombou o húngaro que, de acordo com todos estes senhores, ia acabar com a discórdia no futebol português, e hora e meia depois de mais um sentido minuto de silêncio.
Psicanálise colectiva compulsória, já que, pelos vistos, não é possível demonstrar-lhes - até porque ninguém os trata assim - que são apenas 22 gajos de calções a correr atrás de uma bola? Uma espada Hatori Hanzo? Um chaimite a invadir o estádio? Acabar, por decreto, com um desporto que cada vez mais envergonha este país - quase mais que quem nos governa?
Se calhar o melhor mesmo é emigrar, de uma vez por todas. O que acabo de ver na televisão é deprimente, é bárbaro, é ofensivo, é assustador, é vergonhoso.
É Portugal. É futebol. Quase inevitavelmente, é lixo, merda, desumanidade. Eu tenho vergonha.
Uma semana depois da morte de Fehér, no fim da semana em que se dizia que o luto deveria ajudar a trazer a paz ao futebol português, unindo desportistas e adeptos independentemente da cor clubística, o balanço dificilmente seria mais positivo, isto se considerarmos que estamos num país do décimo-quarto mundo, que nem sequer vai participar no Euro 2004, quanto mais organizá-lo:
1- Mourinho acusa o Sporting e diz que gostava de ver Rui Jorge a morrer no campo - este homem é, realmente, uma mente superior;
2- O Sporting acusa Mourinho;
3- Os jogadores do Boavista e do Vitória de Guimarães decidem discutir com os punhos o que não conseguiram discutir com os pés durante noventa minutos;
4- Os adeptos, obviamente, querem entrar na manifestação de alegria desportiva, arremessando tudo o que lhes vem às mãos, nomeadamente cadeiras às cabeças da equipa de arbitragem;
5- Tudo isto no estádio onde, há uma semana, tombou o húngaro que, de acordo com todos estes senhores, ia acabar com a discórdia no futebol português, e hora e meia depois de mais um sentido minuto de silêncio.
Psicanálise colectiva compulsória, já que, pelos vistos, não é possível demonstrar-lhes - até porque ninguém os trata assim - que são apenas 22 gajos de calções a correr atrás de uma bola? Uma espada Hatori Hanzo? Um chaimite a invadir o estádio? Acabar, por decreto, com um desporto que cada vez mais envergonha este país - quase mais que quem nos governa?
Se calhar o melhor mesmo é emigrar, de uma vez por todas. O que acabo de ver na televisão é deprimente, é bárbaro, é ofensivo, é assustador, é vergonhoso.
É Portugal. É futebol. Quase inevitavelmente, é lixo, merda, desumanidade. Eu tenho vergonha.
domingo, fevereiro 01, 2004
Para a Marta e o Katraponga
Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: poucos te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...
Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversàriamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma e outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.
Encara-te a frio, encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema fisico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...
Álvaro de Campos, filósofo que faz poemas.
Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: poucos te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...
Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversàriamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma e outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.
Encara-te a frio, encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema fisico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...
Álvaro de Campos, filósofo que faz poemas.